“O Mordomo”

“O Mordomo”

Ou como Lee Daniels mostra a força do vento sobre a rocha

Conta-se que foi Howard Hughes o primeiro a compreender a importância de objectos fixos como referência para se perceber a velocidade dos aviões nas cenas aéreas do filme “Hell’s Angels”. Em “Hell’s Angels” esse referencial foi dado pelas nuvens, n’ “O Mordomo” é dado por Cecil Gaines.

Remotamente inspirado na história verídica de um mordomo afro-americano de seu nome Eugene Allen, que esteve ao serviço de 8 presidentes dos Estados Unidos da América, este filme é antes de mais um olhar por vezes fugidio, outras bastante fixo, nas mudanças que ocorreram nos Estados Unidos nos últimos 60 anos, por força dos vários movimentos que promoveram uma ainda não totalmente conseguida igualdade, num País marcado por um apartheid encapotado mas extremamente violento. Como muito bem refere a personagem principal numa das cenas finais do filme, uma América que olha para fora e critica as posturas dos outros, mas que não se olha nem se analisa.

Cecil Gaines é um descendente de aquilo que podemos chamar de “escravos modernos”, ou seja, os que continuaram escravos mesmo após a abolição da escravatura e que na Virgínia dos anos 30 continuavam a ser tratados como tal e a quem os seus mais fundamentais direitos eram sonegados todos os dias.

É nesse ambiente que Cecil vem aprender que, primeiro para se sobreviver, e depois para se ser aceite e apreciado num mundo que todos insistem em dizer que não é o seu, é necessário utilizar duas caras: uma que se altera ao sabor das emoções e das experiências e uma outra impassível e imutável como uma rocha que com o passar do tempo deixa de se ver.

Este é precisamente um dos pontos mais interessantes do filme; num momento em que alguns querem ser vistos como iguais, Cecil agarra-se à noção que lhe foi passada de que na invisibilidade está a segurança. A personagem principal deste filme, não é obviamente uma rocha – nenhum homem o consegue ser – mas aprendeu a imitá-la e, não obstante ter estado ao serviço de 7 presidentes (apenas 5 deles mereceram actores para os interpretar), oferece a todos eles a mesma sensação de plácido reconforto de quem nada vendo e nada ouvindo, sempre está disponível para um sorriso.

Tudo no entanto tem um custo e a sua devoção pelo trabalho traz-lhe conflitos vários com a sua problemática mulher Gloria (Oprah Winfrey) e o seu filho mais velho Louis (David Oyelowo). Gloria é uma alcoólica que chega a perder quase por completo a esperança na relação, mas que contudo permanece ao seu lado dando-lhe a força necessária para suportar as agruras da vida.

Contudo, o contraponto mais interessante da obra é aquele que ocorre na relação entre Cecil e o seu militante filho Louis. E é através dele que nos é oferecida uma panorâmica geral dos mais significativos movimentos revolucionários da época. Desde as caravanas da liberdade e a militância de resistência passiva do Reverendo Martin Luther King, passando pelo rigor quase marcial de Malcom X e culminando no ultra-radicalismo dos “Panteras Negras”. Louis é aliás omnipresente nos momentos mais significativos da época, assemelhando-se a um Forrest Gump activista.

Do observatório da casa mais famosa da avenida Pensilvânia, Cecil assiste ao que se passa na sua nação e testemunha em primeira mão as decisões dos chefes de estado, tantas vezes distantes do vento que lá fora sopra.

Aqui o filme revela o seu lado mais caricatural, quando assistimos um Eisenhower (Robin Williams) ordenar o reforço policial das escolas segregadas enquanto pinta jardins floridos, ou ainda quando um Lyndon Johnson sentado na sanita despacha assuntos de Estado, ou Nixon faz campanhas demagógicas na cozinha e cai embriagado e decadente no sofá.

“O Mordomo” é um bom, mas não excelente filme. A sua estrutura é um crossover entre um biopic típico de Hollywood com um filme épico e inspiracional ao estilo de um “Forrest Gump”. É servido por uma constelação de estrelas que no entanto parecem ser subaproveitadas na maioria dos casos.

Tal é evidente na utilização do excelente Alan Rickman, actor tipicamente inglês nas suas expressões e linguagem, para interpretar Ronald Reagan, um dos mais idiossincráticos presidentes dos Estados Unidos. Ou de John Cusack, outro excelente actor, nada convincente no seu retrato de um Nixon muito insípido. Estranho, muito estranho…

Lenny Kravitz (James Halloway) é outro tiro completamente ao lado e Robin Williams tem direito apenas a meia dúzia de falas e uma expressão facial.

Quanto a Oprah Winfrey, que não tinha um papel marcante desde o longínquo “A Cor Púrpura”, o melhor que se pode dizer é que ao longo de quase todo o filme é fácil esquecer de que se está na presença da mulher mais poderosa dos Estados Unidos. A sua interpretação de Glória é escorreita e convincente e só no momento em que chora de alegria com a eleição do seu grande amigo Barack Obama é que volta a ser Oprah por alguns instantes.

Forest Whitacker prova mais uma vez que é um grande actor conseguindo uma interpretação mesclada de contenção e intensidade dramática dignas de nota. Este é um papel à sua medida, conferindo maturidade e consistência à sua carreira, não estando no entanto ao nível do brilhantismo conseguido em “O Último Rei da Escócia”.

As melhores cenas no entanto contam com o talento e naturalidade de David Oyelow, Cuba Gooding Jr. (Carter Wilson) e Elijah Kelley (Charlie Gaines). Outra nota extremamente positiva é a belíssima banda sonora, com a qualidade a que Rodrigo Leão já nos habituou.

“O Mordomo” é um filme com um sólido argumento, cortesia de Danny Stong, bem realizado e razoavelmente bem interpretado por alguns actores de nomeada. É daqueles filmes que deixa uma sensação de bem-estar pela vitória dos bons e justos, com uma bandeira estrelada em fundo e um discurso inspirador a ecoar nos nossos ouvidos, o que é um final bem norte-americano.

Não tenho dúvidas de que “O Mordomo” vai ser premiado com óscares, não estou certo é que sejam os correctos.

Crítica por Paulo Baía-Mourinha



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