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Realidade Virtual

A promessa adiada.

Na viragem da primeira década do novo milénio, importa fazer o balanço de até onde chegamos e até onde queremos ir. O futuro que nos prometeram não se cumpriu. Em 2010 ainda não aterraremos em Marte, não poderemos comprar mochilas-foguetão e ainda não vamos visitar lupanares onde pululam saturnianas sensuais. Talvez como reacção a este embuste tecnológico, os finais dos anos 90 (já lá estivémos) foram pródigos em novas promessas, invenções fantásticas que supostamente iriam tornar todos os nossos gestos quotidianos, de trabalho ou lazer, mais fáceis e mais intuitivos graças à migração para o digital.

A apologia das maravilhas incontáveis do CD (quem não se lembra do anúncio que promovia o substituto do vinil em que um senhor provava que não havia riscos que inutilizassem os muitos megas de informação comprimida) é um bom exemplo, mas o mais nostálgico, porque mais perdido no tempo, é o da realidade virtual (VR na sigla original).

A tecnologia em si não é dos anos 90, mas foi esta a década que imortalizou a imagem da criança ou adulto utilizando um estranho capacete na cabeça e com a boca bem aberta de espanto pelo fantástico mundo novo que se lhe abria. Já nos anos 50 foi inventado o Sensorama, uma experiência virtual que se queria o mais completa possível, combinando conteúdo audiovisual, vibração, vento e odores. O princípio era o mesmo da VR: tornar a experiência mais profunda e envolvente, um desafio que, de resto, se mantém actual na indústria de vídeojogos dos dias de hoje.

Fomos à wikipédia: foi no final dos anos 80 que a VPL Research Inc lançou no mercado as luvas Data Glove, a primeira incursão comercial de produtos de realidade virtual, e o capacete “Eye Phones” (qualquer semelhança com o multi-tarefas da Apple é mera coincidência). Seria um funcionário da VPL que em 1986 cunharia o termo realidade virtual, combinando os conceitos de ambiente virtual e realidade artificial.  Outras luvas percursoras incluem, e só as mencionamos pelos nomes altamente, a TouchGlove, a Cyberglove e a própria Powerglove da Nintendo, que partilha o propósito e tem o mérito de ser um dos primeiros lançamentos comerciais em larga escala de um produto semi-VR (a combinação desta com o jogo Rad Racer que incluia uma opção para ser jogado em 3D, com recurso aos famosos oculos de lentes vermelhas e azuis, constituia o mais próximo de experiencia virtual que a NES podia oferecer).

Em pleno início da febre informática global foi tudo o que os mainstream media precisaram para endeusar esta nova tecnologia como se fosse a melhor invenção desde o leite achocolatado, como fariam, anos mais tarde, com outras, sobretudo porque a realidade virtual prometia actividades pedagógicas e construtivas como visitar museus sem sair de casa, ao contrário das consolas de vídeojogos que reinavam na altura e que prometiam apenas diversão sem limites.

A realidade virtual foi vítima de um excessivo optimismo face às possibilidades da informática. Numa era em que os horizontes não se abriam com novas e entusiasmantes conquistas espaciais, media e informáticos viraram-se para a cartografia de outro espaço por explorar – o ciberespaço. A VR seria o interface que nos permitiria viver na internet e não só surfá-la. Em vez de ligarmos um modem, nós próprios migaríamos para o mundo binário e tudo graças à realidade virtual. Bastaria um capacete e luvas para que a experiência do online fosse o mais democrática possível, sem necessidade de conhecimentos avançados (estamos numa época em que guias para o Microsoft Office eram best-sellers).

Assim se explicam ideias que, aos olhos de hoje, são muito pouco práticas como por exemplo o supermercado virtual. Hoje em dia podemos fazer comprar online, basta para isso aceder a um site e escolher produtos e sua quantidade. No início dos anos 90 havia a crença que o futuro passaria por entrarmos numa representação virtual desse mesmo supermercado e, no lugar de simples cliques, agarrar produtos das prateleiras coloridas virtuais, simulando para lá do bom senso a experiência de fazer compras num modelo 3D (apenas de forma estupidamente literal).

Outra característica da VR era a sua inantigibilidade. A realidade virtual era algo que, e atenção à forma verbal, permitiria, abriria e faria uma porrada de coisas, algumas mais corriqueiras e aqui simuladas, outras de carácter novo. Mas, no essencial, a VR foi uma tecnologia de futuro incerto, um avanço técnico pelo qual valia a pena esperar até que a representação gráfica simulasse na perfeição o mundo, até que o áudio se tornasse o correspondente perfeito, até que a realidade virtual permitisse experienciar todos os outros sentidos numa simulação imaculadada.

Enquanto esperavamos, o teaser era feito através de, por exemplo, parques de diversão ou salões de arcada. Os early adopters, para os quais qualquer tecnologia faça capas merece ser comprada, não queriam esperar muito mais e até jogar sem teclado valia para poder viver no mundo vectorial. Cá em Portugal, muitos se lembram da quantidade de simuladores e diversões que faziam uso de capacetes 3D, divertimentos que se mostravam bem mais caros que as restantes máquinas onde os habituais 100 escudos permitiam vários minutos de divertimento (no Daytona ou naquele “dos murros”). No entanto, o pináculo do entertenimento virtual por cá seria sem dúvida o Pavilhão da Realidade Virtual, um dos mais visitados da Expo 98 (e com uma fila de espera de 3 horas), onde era possível experimentar esta promissora tecnologia. Vários outros pavilhões principais faziam uso de princípios da VR, combinando sensações para uma melhor simulação.

Dentro das várias modalidades de realidade virtual destaca-se o polémico sexo virtual. Ainda que a ideia, alimentada pelos media, de dar beijinhos à mulher dos nossos sonhos envergando uma quantidade ilimitada de sensores que estimulem tudo e mais alguma coisa possa ser o que primeiro nos assalta a mente, o termo sexo virtual era usado para qualquer actividade de cariz acasalador que remotamente englobasse novas tecnologias. Assim, o sexo virtual, ainda que muito querido pelos meios de comunicação que muito dissertavam sobre o assunto (em suplementos de fim-de-semana e reportagens em horário nobre) sem nunca serem muito claros sobre do que se tratava em concreto, apresentou a sua maior expressão em salas de chat com conversas picantes (muito antes do boom das webcams) e em alguns CD-Roms cheios de vídeos com má resolução e meia duzia de cliques de rato (para justificar o formato e a suposta interactividade) disponíveis na prateleira mais alta daos melhores quiosques e bombas de gasolina.

A pegada cultural desta e de outras tecnologias a ela paralelas (internet, 3D) está bem marcada. Numa retrospectiva clássica recordam-se o halodeck do Star Trek, ou da Danger Room dos X-Men, a sala de treino que os mutantes usavam para simular ataques aos malvados sentinelas. Há mais exemplos: Tron, que injustamente não ganhou o Óscar de melhores efeitos especiais em 1982 (a produção computadorizada era considerada batota) apresenta uma história cujo trama se passa no interior de um computador no qual os programas têm forma fisica. Outros filmes como Lawnmoner Man, EXistenZ, Matrix ou The Net oferecem, de uma maneira ou de outra, uma imersão no universo da VR.

A realidade virtual também marcou presença nas séries. O seriado VR Troopers, para além do nome bem fixe e de não passar de um clone dos Power Rangers, pouco tinha de realidade virtual, mas as intenções estavam todas lá (e sim, o loiro era filho do vilão). A série VR.5, por cá emitida, se não nos falha a memória pela TVI, contava a história de Sidney, uma rapariga que gostava de brincar com o seu capacete de VR, numa metáfora muito óbvia à masturbação feminina (as cenas assemelhavam-se incrivelmente a filmes eróticos). E em solo nacional, o genérico de Herman Enciclopédia abordava o assunto com humor, apresentando o seriado como uma espécie de Encarta Enciclopédia.

O impacto duradouro da VR pode ser visto também nos muitos exemplos da proliferação da palavra “virtual”, sobretudo em produtos de índole tecnológica. E se o infame Virtual Boy da Nintendo (uma espécie de Game Boy com um formato de oculos VR que proporcionava imagens 3D, gráficos vectoriais a vermelho e muitas náuseas aos jogadores) ainda oferecia uma experiência minimamente imersiva, jogos como Virtua Racing não passavam de vulgares títulos. Até há pouco tempo, os utilizadores Mac ainda usavam nos seus Powerbooks um software chamado Virtual PC para poderem correr Windows e assim matar as saudades do Minesweeper.

Hoje em dia, muito deste entusiasmo nos parece ridículo e inconsequente e são poucas as aplicações massificadas da VR. O mais próximo será talvez o Wii Remote da consola da Nintendo e o Second Life, cada um por razões e com sucessos diferentes. O complexo militar é outra aplicação actual da realidade virtual, embora menos visível mas já antiga: nos anos 60 a Bell (fabricante responsável pelo Huey Cobra) já tinha desenvolvido uma câmara para instalar no fundo dos aparelhos e que seria controlada pelos movimentos da cabeça do piloto para facilitar aterragens nocturnas. Para lá do sucesso e aplicação da VR, importa sim o ímpeto criador que esteve na sua origem, o esforço de tantos quantos procuraram levar mais além as fronteiras do real num pulsar prímevo de atingir mais e melhor conhecimento. Com consequências hilariantes.



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