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Um eléctrico chamado Desejo

De Tennessee Williams por Diogo Infante no Teatro Nacional D. Maria II até 31 de Outubro.

Eis um clássico, a receita mágica que faz esgotar a sala dourada de teatro lisboeta: mistura-se um grande texto de teatro, uma peça de Tennesse Williams que muitos recordam dos ecrãs do cinema americano, encenado por um famoso actor, agora encenador e director do Teatro Nacional, que conhece o outro lado de lá e que toda a gente conhece e aprecia, convidam-se excelentes actores, alguns deles famosos e estimados pelo público, uma fabulosa e grandiosa cenografia e luz que encantam qualquer espectador mais inclinado à maledicência gratuita e voilá… é um espectáculo que promete casa cheia até ao fim!

Todo o enredo se centra num jogo de polaridades. Uma viúva americana do sul, aristocrata falida mas requintada, educada para agradar e ser agradada, visita por uns tempos a sua irmã de bom coração a Nova Orleães. Chega a essa cidade da América do Norte, num eléctrico chamado “Desejo” e é assim que conhece o seu cunhado, filho de emigrantes polacos, homem rude, violento e sem tacto, a seu ver, um péssimo partido para sua irmã, mas na verdade, demasiado atraente, viril e magnético ao seu olhar.

Todo o espectáculo é um jogo de contraste entre personagens, formas de viver e entre conceitos como: desejo versus dependência, poder da sedução vs dependência em ser agradado e agradar, desejo vs vício, fragilidade vs brutalidade, amor vs amargura, violência vs amor, casa cheia vs solidão, verdade vs mentiras, bom nome vs má fama, desespero vs ajuda e tranquilidade, truques e manhas vs transparência, passado vs futuro, homem vs mulher.

Blanche Dubois, interpretada fabulosamente por Alexandra Lencastre, que regressa ao teatro 12 anos depois e que se estreia no palco nacional com uma enorme expectativa e entrega, parece e quer parecer alguém que não é, um passado que não teve, um futuro que lhe está vedado e pretende fugir a uma realidade que dói e assusta qualquer mulher que naquele tempo, anos 40, vê a sua vida desgraçada, sem dinheiro, sem homem, sem emprego, sem rumo e sem solução aparente que não o recurso à casa e comida da sua boa irmã, Stella. Todo o seu plano seria de feição se não fosse a astúcia de Stanley Kowalski, seu cunhado, filho de emigrantes polacos, viciado em álcool, jogo e agressividade natural, que trabalhou duro para ter o pouco que tem, que suou para construir uma família e amigos e que aprendeu na escola da vida o suficiente para desconfiar e descobrir os segredos de Blanche.

Blanche, que não quer realismo mas magia na sua vida, não consegue assim enfeitiçar nem o seu cunhado nem o seu pretendente e futuro radioso, a esperança e a sua promessa de sorriso, Mitch. Porém, a marca de Blanche nas suas vidas familiares será, aparentemente, duradoura e irreversível.

O desejo atraiçoa-a. A dependência da vida, do dinheiro e do amor dos outros vira-lhe as costas e devolve-lhe o passado e a solidão. O seu fim é infeliz, triste e surpreendente.

Blanche é vítima de si mesma, da armadilha dos seus filmes e ilusões, da sua educação aristocrata decadente, muda e inútil e sempre continuará a depender “da bondade de estranhos”. Fica no ar, a nosso ver, a história popular do Pedro e do Lobo bem como a dúvida se o fim de Blanche terá sido o antes daquela visita a Nova Orleães.

Albano Jerónimo é, sem qualquer dúvida “the right man for the job”: cru, verdadeiro, brutal, violento, sensual, surpreendente e arrebatador em palco. Trata por tu, com a sua arte e engenho, sem pestanejar, o talento da actriz Alexandra Lencastre, apesar de pertencer a uma nova geração de actores. Um actor promissor e genial, o nosso Marlon Brando, tem como ele, estilo, o olhar penetrante, o charme e a arte de representar.

Lúcia Moniz, não canta mas encanta, pois interpreta lindamente Stella, tem a “luz” que o encenador Diogo Infante disse ter encontrado e brilha, de facto, em palco aos olhos de qualquer espectador mais desatento. É uma delícia ouvi-la e vê-la a representar, foi uma escolha do elenco muito feliz e acertada por parte do encenador.

Mitch um gentleman, interpretado por Pedro Laginha, é igualmente muito bem escolhido. Este actor consegue comover, quase até o coração de Blanche, e dar à sua personagem a naturalidade e o lado leal, naif e amoroso de qualquer homem bom, solteiro de meia-idade que ainda vive com a sua mãe.

Todos os outros actores secundários também são bastante bons. Como tal, todos estão de parabéns, eis uma obra prima do Sr. Encenador-actor-director  – foi na qualidade de director que escolheu a peça, na qualidade de encenador que criou este espectáculo e é com o saber da experiência de actor que ajudou os seus actores a imprimir a arte que faz dela o que ela é -, Diogo Infante que não só tem o mérito de ter ousado e desafiado toda a gente para um projecto ambicioso como este, que não era encenado há vinte anos em Portugal, como soube encenar e direccioná-lo para um bom porto, consagrado por mérito e visivelmente, por grande prazer.

A cenografia de Catarina Amaro está exemplar. A construção do edifício, das escadas em caracol para os vizinhos e do interior da casa, quando roda o palco, dá cor, textura e vida real e credível a todas as cenas. A queda simulada de chuva também foi um pormenor criativo realista e soberbo. O desenho de luz de Nuno Meira também foi bem executado e favorável a um ambiente emocional adequado a cada momento.

Eis assim um espectáculo a não perder até ao fim de Outubro que justifica uma fila de espera na compra do bilhete em troca de um garantido serão de bom entretenimento e lazer cultural.



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