imagem-045-1

Falconetti: o rosto-requinte das lágrimas

Coimbra e o Anfiteatro Colina de Camões receberam, no dia 21 de Julho de 2011, Bernardo Sassetti, que acompanhou o filme de Dreyer, “A Paixão de Joana d’Arc”, com música de sua autoria.

Um anfiteatro ao ar livre. À frente, um lago e uma tela onde embatem morcegos à espera de casting para “O Vampiro”, de Dreyer. Um anoitecer de Verão comprado nos chineses. Um piano Steinway & Sons de peito aberto ao anoitecer… ah, fadista! (pastilhas Valda amanhã, para os Sons?) e um foco, iluminando a arena de Sassetti. Ecoa um Haendel inesperado: Water Music de uma fonte ou cascata em regime de full-time.

Soa um aviso: os “efeitos de obscuridade”, desejados para optimizar a projecção, chegarão 10 minutos atrasados. É o endémico quarto de hora académico, na cidade dos Doutores.

Chega Bernardo Sassetti. Summertime and the living is not so easy: cachecol just in case. Sassetti começa por desvelar a sua cumplicidade com a obra de Dreyer que iremos ver, “A Paixão de Joana d’Arc”: a Cinemateca dos verdes anos (Paredes e o jeitinho que nos dariam…). Passamos novamente à obra, sempre via Sassetti: no que puder ajudar, estaremos em presença de uma “versão muito dolorosa, muito angustiante, da Paixão de Joana”. “A novidade dos elementos dramáticos utilizados pelo realizador, a influência que o cineasta operou na montagem contemporânea”… O “elemento da dúvida e do processo”, na sua simbiose geradora de estranheza, “criam uma enorme dúvida” (sic, ou mesmo tvi). Música improvisada em “momentos”, por vezes “muito silenciosa”… Quem dá mais? Vendida ao senhor no Steinway!

The Cinémathèque Française presents… Fundo negro, trémulos e chaves a fazerem jogging no interior do piano (os fins de tarde no campo), e à esquerda um inextinguível poente onde se encontra Sassetti: o foco de Apolo — “Do mundo grego outro sol” — será um ruído visual constante, ao longo da projecção. Estamos numa espécie de prelúdio à obra: ouve-se uma 4ª perfeita, seguida de uma 6ª menor, tudo muito original para uma 5ª à noite. Oposição de registos no piano: o extremo grave e as cintilações agudas, aves feridas pela noite em japonês — cortesia do DVD, com dupla legendagem, sempre que fosse preciso corrigir o francês de origem made in toque-o. Deste prólogo, fica-nos algo extraordinário: a lembrança, anterior à entrada de Sassetti em palco, da informação constante no DVD exibido — There’s no information that Dreyer ever selected a definitive score for this film.

Inicia-se o filme propriamente dito. O processo de Jeanne: a azáfama dos algozes — a “banalidade do mal”— traduzida pelo ruído produzido no interior do piano (Chaves do Areeiro?). Este mesmo recurso presidirá ao refulgir da violência, em momentos como Va préparer la torture, na zombaria dos guardas, ou no crepitar da fogueira. Façamos rewind, back to where we started. À pergunta Quel âge avez-vous?, respondem o motivo inicial do 3º andamento da “Sonata Patética”, de Beethoven, e os 19 anos de Jeanne. Sassetti utilizará recorrentemente esta célula ao longo do filme. Surge uma figuração que lembra em parte o Adagio assai do “Concerto em Sol”, de Ravel, durante a sequência iniciada pela estafeta de rostos dos juízes que finda quando um dos clérigos santifica a ré. Trémulos para o recrudescimento da violência, texturas pianísticas mais rarefeitas, dialogantes quando Jeanne se encontra na presença de um ou poucos antagonistas. O Pater e o motivo suspensivo, de dúvida. Êtes-vous en état de grâce, Jeanne Sassetti? Repetição do motivo do Pater associado a outros elementos litúrgicos: a Missa (se, e só se, Jeanne abdicar da roupa de homem) e o Saint Sacrement. A palavra seule sublinhada pelo beliscar de um bordão. Juntos com a heroína, entramos na câmara de tortura e encontramos o momento musical mais aprazível: a 25ª variação Goldberg, momento em que o páthos foi sabiamente calculado. Segue-se a feira do horror, o carrossel dos instrumentos de tortura; o paroxismo é também musical, resolvendo em silêncio o desmaio de Jeanne. O silêncio ressurgirá com a passagem para o exterior e a coerção de um juiz, pressagiando, preparando o renegar de Deus pela protagonista. A máquina-quase-zero, o cabelo no chão, um sonoro turbilhão desaguando na voz do silêncio novamente: e é o regresso de Bach com a descoberta do erro na abjuração. Novos ruídos, no interior do piano, e o crepitar da fogueira; trémulos contínuos no baixo e o elemento melódico no registo agudo. Mais trémulos para toda a família, com a revolta popular. Um poslúdio, generosamente acompanhado pela indicação “Sem sinal”, na tela, e uma contagem decrescente partindo dos 30 minutos… Palavra de honra!, cogitámos, deve ser alusão àquela parte, no filme “A Palavra”, em que alguém pára o relógio: e Bernardo Sassetti abandonou o “Sem sinal” aos 26′ 46…

Encantados com o acompanhamento musical que Sassetti soube proporcionar em “Maria do Mar”, ou mesmo nos apontamentos sonoros que criou para o filme “Alice”, filme “surdo” pela dor, certos da excelente capacidade do pianista para fazer música de câmara com o cinema mudo — musique de la lumière, segundo Abel Gance —, ficámos um tanto desapontados com a experiência vivida em “O rosto da paixão”. Esperávamos o refinamento de quem se propõe acompanhar ao piano uma ária antiga, e não, como nos confidenciou um amigo, a melopeia de uma varejeira — allegro ma non troppo!

O rosto de Falconetti, tela onde tudo se passa, onde apeteceria perguntar “Qual é a minha ou a tua lágrima?”, parece ter sido acariciado musicalmente por uma máquina de barbear. “A minha vontade, o meu sentimento, o meu pensamento: a mística de volta à vida”, segundo as palavras de Dreyer em “O meu ofício”, ou, como disse São João da Cruz:

Entrei-me adonde não soube
e quedei-me não sabendo,
toda ciência transcendendo.

A música, enquanto agente de ligação de planos, algo que proporcione o legato entre a descontinuidade das imagens, ou enquanto catalisador de ritmos narrativos, pareceu-nos algo “fácil” e insuficientemente capaz de acompanhar um “abismo ascendente” como o estado de graça patente neste filme.


Fotografia de Patricia de Almeida



There are no comments

Add yours

Pin It on Pinterest

Share This