The Inkomati (dis)cord
Um espectáculo. Duas críticas.
Demissionismo Social
Boyzie Cekwanae Panaíbra Gabriel Canda são ambos criadores africanos, ambos vizinhos geograficamente, ambos com uma vontade de mergulhar nas suas referências e de contar as suas próprias histórias. Ambos estiveram dia 23 de Maio (e dia 24), no São Luiz – Teatro Municipal com “The Inkomati (dis)cord”. Foi com este espectáculo que arrancou a edição 2012 do Alkantara Festival.
O Acordo Inkomati (fracassado pacto de não agressão assinado a 16 de Março de 1986 pelo presidente moçambicano Samora Machel e o presidente sul-africano PW Botha) serve como ponto de partida para esta colaboração que condensa e, depois, subverte, conceitos e experiências.
Em palco, evitando o literal e o cliché, os corpos lutam, de forma agressivamente rigorosa, contra camadas de resíduos do pós-colonial e de equívocos culturais e expectativas. Todos têm uma perspectiva sobre a história e a necessidade de a reescrever. Ali retalham-se preconceitos, colapsam-se identidades (culturais e históricas), enquanto se lida com linguagem física, linguística e estética.
Contrapondo tudo isso, deparamo-nos com interrogações sobre percepções que cada um tem sobre o País e a cultura do outro num cenário pós-guerra e pós-apartheid. Encontramos paradigmas que revelam um continente (ou mesmo um mundo) em perene carência e uma sociedade em sempre eterna indolência.
Na cena final, uma mulher ligada e amordaçada com fita adesiva tenta contar uma história (a dela e de muitas outras a quem não se deu voz), mas a sua voz e corpo estão bastante extenuados, restando-lhe apenas a hipótese de se exprimir contorcendo o corpo e emitindo gritos abafados.
A seu lado suavizam-se factos, para uma sociedade que teme em procrastinar uma reflexão sobre como se ser um indivíduo (e a sua própria definição) perante um ambiente envolvente como o presente.
No fim, apenas corpos devastados por conflitos pessoais num universo muito próprio, que tentamos crer como distante. Tanto para a democracia.
Miguel Stichini
Passados dez anos do primeiro encontro de Boyzie e Panaibra, precisamente em Lisboa, ”The Inkomati (dis)cord” chega não em estreia mundial, mas com as honras de abertura para a primeira noite do Alkantara Festival.
Falar de Moçambique é falar de Samora Machel. Falar da África do Sul é falar do Apartheid e de P.W. Botha. Falar de ambos é falar sobre “Inkomati”. Falar de tudo isso em 2012 é, inevitavelmente, falar de Boyzie Cekwana e Panaibra Canda.
O público entra na sala e o desconforto sente-se à partida quando temos quatro personagens a olharem-no através de dois buracos circulares numa folha de papel.
Os actores começam por deambular pelo palco em movimentos rígidos e mecânicos onde a importância do momento recai na força do método acção/reacção ritmados pela troca insistente das máscaras de papel entre os actores. O momento é constituído por uma linguagem abstracta, onde o absurdo e o emocional são trazidos para um mesmo plano sobre a forma de monotonia e ausência de texto. Uma experiência que é, propositadamente prolongada até à fronteira da angústia para deixar bem saliente no mundo sensorial da plateia o tempo que se esperou por algo que falhou.
A monotonia quebra-se e passamos agora a ver os quatro corpos dispostos perante uma moldura que está mais para o desejo de se cumprir no protocolo do que para a vontade de se fazer cumprir o acordo. A desconfiança que sabemos ter existido faz força para não cumprir aquele retrato, mas sabemos que tudo vai correr bem quando uma das actrizes é despojada da moldura e atirada contra o chão. O retrato é quebrado e inicia-se o desbravar do caminho em busca de um futuro expectante. Esse percurso tem até ao fim um «Hello» pontual que marca a fronteira entre as assinaturas que dizem haver um compromisso e as folhas que manipuladas pelo Homem caem no chão. É um corpo sozinho em fundo de cena. Talvez o único a querer que o acordo se cumpra e que a pausada largada de folhas de papel com olhos não passe de uma mudança de figuras e de demarcação do tempo. Aquele corpo preciosamente estático, que é paralelamente o mais fluente do espectáculo, é tão admirável que centrarmo-nos nele é como estarmos horas a olhar para um rio que não se preocupa por onde passa, apenas corre.
Se é percetível que há uma realidade actual por cumprir, aqui, há uma vertigem interior de uma contemplação estática que se impõe e que é para sentir.
Definir um estilo no qual se pudesse inserir esta criação era potencialmente cair no erro. “The Inkomati (dis)cord” é um território de exploração de várias linguagens performativas. Ora estamos numa dimensão de teatro mais convencional com o texto, ora de performance nos silêncios , ora de teatro físico na coreografia. E, numa narrativa que é também coreográfica, o importante não se centra tanto na disciplina do discurso, mas sim, na virtuosidade que o redondo dos corpos e os sinais sonoros transbordam. Não falamos de algo muito complexo tecnicamente, mas sim, de algo exigente fisicamente para corpos que acima de tudo querem ser o contrário de viver no passado.
Uma construção que, sem nunca deslizar, encara os corpos como palavras e, através deles, estrutura sabiamente um jogo de tensões entre a condição humana e o poder político presente várias vezes ao longo do espectáculo pelo discurso de Samora Machel. Os mesmos corpos que cansados da tentativa e gastos no suor do esforço procuram penosamente reclamar a sua pertença ao mundo.
A caminho do fim do rio, há ainda um jogo do “passa palavra” como enfatização para o silêncio imperativo de uma voz que é coro de dois povos aos quais não deram voz, e onde a manipulação dos factos reais é feita a três tempos para uma sob aproveitada liberdade que começa numa boca oprimida por fita adesiva.
Dar o nome de algo que é fluente a um acordo estagnado é uma metáfora quase irrisória.
Mas quem sobre isso tem um folego para não dizer que isto é assim, mas para imaginar que pode ser ou devia ser de outra maneira é porque garantidamente tem a urgência em mudar a habitabilidade no passado e, em tempo linear, estimular a necessidade de construir o futuro.
O palco não é um território neutro e no fim o que resta, é uma lanterna de capacete que se apaga em início de linha.
Estamos cada vez mais longe da condição política e cada vez mais próximos da margem, o rio que passa tem de ser um Homem com voz. «É preciso abanar a árvore. É preciso sacudir a árvore. É preciso abanar a árvore, sacudir a árvore».
Luis André Sá
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