Um Homem na Cidade #4
Sair de Lisboa
Três vezes por ano abandono Lisboa com uma viagem traçada de memória: Sines. É um voltar às origens, onde cresci, aprendi a ler, onde vi os primeiros filmes num cinema dos anos 30, onde entrei pela primeira vez numa igreja e acreditei no divino, onde escrevi os primeiros poemas e onde passei os Verões numa imensidão de praia que vai de Melides a Vila Nova de Milfontes. Em Sines tenho o abraço da baía e o abraço dos amigos de infância. A casa onde sonhei os filmes que agora faço. As ruas cheias de histórias ainda por cumprir e que agora se misturam, mudam de tamanho, destruídas e reconstruídas na modernidade. De vila, Sines já passou a cidade. De porto de pesca, Sines passou a um dos portos mais importantes na Europa. De terra de navegadores e poetas, Sines passou a receber um dos festivais de “world music” mais importantes do mundo.
Mas quando volto a Sines, não é nada disto que procuro. Todas estas coisas estão lá, pairando na minha memória e no céu de andorinhas, nas palmeiras que agora morrem por causa duma estúpida praga neglicenciada pelo país político, nas conversas repetidas com os amigos que, ano após ano, vão ficando mais velhos, mas cujo sorriso é mais eficaz que qualquer máquina do tempo. Voltar ao lugar da nossa infância tem essa qualidade incomodativa. Por um lado, voltamos ao conforto e à inocência, por outro lado, percebemos como o tempo mudou na cara dos outros – o tempo que às vezes não descobrimos na nossa, tal a velocidade com que vivemos na cidade. Quando volto a Sines, volto à minha praia. São Torpes. Volto à praia e ao barulho do mar, ao vento que nos desassossega a toalha e onde o silêncio foi um campo aberto de imaginação. Nessa praia, tudo permanece no mesmo lugar – até nós e a nossa importância na paisagem. É quase como voltar ao princípio do mundo, ao nosso princípio físico e emocional. Nesse silêncio, imaginei muitas coisas, muitas vidas – todos temos inúmeras vidas dentro de nós -, onde escrevi sem escrever, como que compondo os meus textos no céu azul, sempre azul brilhante, onde desenhei filmes, onde vivi tragédias, onde anotei a vida como num livro – do princípio ao fim. E ali, no espelho da água cristalina, nas areias brancas e doces que trago sempre para casa nos ténis, sou apenas eu, novamente, com todos aqueles sonhos silenciosos e íntimos. Sou eu, a minha voz que não se ouve, a voz profunda do mar, do céu, sem qualquer artimanha da cidade, sem qualquer possibilidade de fuga.
Na praia de São Torpes, onde cresci e onde me fiz homem, vivo verdadeiramente. Sou real. Muito mais real que em todos os outros lugares. Ali, na praia da minha infância, não existe espaço para a sombra, a mentira, a tristeza, o engano. A luz não permite, as marés não permitem, as areias das dunas não permitem que me esqueça de mim por um minuto que seja. Sou inteiro. Somos inteiros. Talvez que essa seja, de facto, a nossa verdade mais profunda. Fomos feitos e só existimos no primeiro lugar onde tudo começou – onde ganhámos consciência da nossa própria consciência. Só ali podemos dizer que existimos. Depois, ao fim do dia, quando voltamos a casa, ou quando voltamos a Lisboa, há uma espécie de sombra que se acumula no nosso olhar ou nos movimentos do corpo e passamos a viver de encontrões, filas de trânsito, cartões, telemóveis, música de elevadores, parques de estacionamento, mais filas, mais barulho, mais tudo – até ao ponto de não termos voz… não termos corpo.
Talvez por isso mesmo necessitemos tanto das redes sociais para gritar um pouco. Mas na praia da nossa infância não precisamos de gritar nem de nos fazer ouvir – pois somos apenas uma parte dela. Do mar, da areia, do sol – e sentimos que tudo ali faz finalmente sentido, sem a necessidade de um único som. Somos apenas parte da paisagem.
Hoje, o mar tinha a cor dos teus olhos – os teus olhos eram o mar.
Crónicas Anteriores: #1 – Tanta Lisboa para ver e tão pouco tempo // #2 – Menos tempo que um video do youtube // #3 – Paris em Lisboa
Ilustração de Bruno Martins
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