Cãoceito

Uma nova forma gráfica de encarar a música.

A vulgarização e a consequente baixa de preço dos equipamentos de gravação vieram permitir que a gravação de CD’s com um mínimo de qualidade se tornasse acessível a quase toda a gente. Já o advento da Internet veio possibilitar um acesso quase instantâneo e massivo à música por parte do consumidor, através de uns simples cliques no rato. Estes dois factores levaram quase por si só ao advento dos CD-R’s, gravações caseiras de baixo custo, com o objectivo de tornar mais acessível novos projectos musicais e/ou outros mais experimentais, normalmente conotados a um circuito mais alternativo.

É aqui que entra a Cãoceito, ideia trabalhada a quatro mãos e sediada em Coimbra, que se dedica ao projecto gráfico para suportes musicais. O objectivo do Cãoceito passa pela valorização do CD enquanto objecto físico, cuja produção caseira tende a desvalorizar o seu aspecto material.

Fiéis à política do do it yourself e até ao ready made, o Cãoceito aposta numa intervenção na área musical bastante particular e original, numa época em que a globalização e a massificação dos objectos tendem a aproximá-los da banalização e da indiferença. Cada disco saído sobre a alçada do Cãoceito é uma autêntica obra de arte dentro da própria obra de arte. E limitada.

A Rua de Baixo foi ao encontro dos mentores deste projecto – Cristina Dias, Manuel Garcia, Marta da Silva e Rita São Marcos – com quem esteve à conversa.

Para quem não conhece, o que é o Cãoceito?

O Cãoceito é formado por um grupo de quatro amigos, que foram colegas no curso de Design de Comunicação na Faculdade de Belas Artes – Lisboa, e que partilham o mesmo gosto e entusiasmo pela música. Desta junção de preocupações e gostos em comum nasceu o Cãoceito – suportes gráficos para projectos musicais, que defende o do it yourself, a personalização dos suportes musicais (todos as edições são limitadas, numeradas) e a recuperação de tecnologias como a serigrafia e a gravura.

A vossa posição perante o CD enquanto “obra de arte” faz lembrar a atitude de movimentos como o Arts & Crafts, que defendia o objecto artesanal em oposto ao objecto produzido em série. É assim que vêem a música (e os discos) de hoje em dia, massificada e banalizada?

Se é certo que os nossos objectos são produzidos artesanalmente, um pouco à semelhança do que fizeram os mentores e seguidores do movimento Arts & Crafts, certo é também que não defendemos um regresso ao passado, nem estamos de costas viradas aos avanços tecnológicos. A nossa atitude não é tão radical e idealista quanto a de Morris e nem o pretende ser. Se assim fosse, o método de gravação e reprodução dos CD-R não seria a drive de CD que permite a cópia em série.

A questão aqui não se coloca como uma oposição. Apenas acreditamos que é também possível uma valorização do objecto CD enquanto objecto material, físico que possibilita uma experiência visual e táctil em complementaridade com a sonora. Por isso nos movemos no campo específico das edições especiais limitadas onde é dedicada uma atenção especial, redobrada ao contentor que embala o projecto musical. O que não quer dizer que entendamos que a música esteja a ser “massificada”, no habitual contexto da indústria discográfica, ela apenas existe em diferentes contextos. Não nos afirmamos contra a convencional indústria discográfica assim como também não entendemos que a música esteja a ser “banalizada” só porque hoje em dia temos um acesso quase imediato, através da Internet, a uma quantidade enorme de projectos dos quais ouvimos falar há uns dias, umas horas ou minutos. A música não se torna banal apenas porque é mais acessível.

Tanto o do it yourself como o ready made parecem ser as vossas principais políticas. Existe alguma influência destes movimentos ou de algum artista mais em particular?

O conceito deste projecto surge de uma pesquisa por nós realizada acerca do panorama musical nacional actual. O que daí resultou foi conhecer que enquadramento e em que contexto é que este projecto se poderia inserir e de que forma o poderia tornar real. O do it yourself acabou por surgir naturalmente e tornou-se uma referência para nós e algo que abraçamos em todos os nossos projectos de concepção de embalagem dos CD-R. Se a vontade era ver os nossas ideias materializadas e começar, de facto, a produzir objectos, restava-nos a hipótese de usar os escassos meios à nossa disposição e tentar tirar o máximo partido dos mesmos.

Em relação ao ready made, parece-nos interessante a forma como a ideia surge aqui. Nunca nos tinha passado pela cabeça olhar para os nossos projectos como potenciais ready-made porque a recuperação desses mesmos materiais para as embalagens surgiu, por um lado, de uma preocupação relativa às quantidades de materiais que se desperdiçam diariamente e, por outro lado, porque nos permitiu conseguir produzir objectos mais económicos.

Acreditam mesmo – como afirmam no vosso sítio – que a música tende a ser desmaterializada e que o futuro passa pela internet?

A Internet é inegavelmente um meio de comunicação de massas que permite um acesso rápido, fácil e económico a praticamente todo o tipo de conteúdos. O papel da Internet é já suficientemente relevante nos dias de hoje, para que se assuma quase como um dado adquirido que esta é a ferramenta mais utilizada como fonte de informação. Com o passar dos tempos o mais provável é ir assumindo um papel cada vez mais preponderante, estendendo-se a todas as áreas. A música não é excepção. No caso da música é evidente o que tem vindo a acontecer nos últimos anos. A compra de um CD áudio pode ser facilmente substituída por um download e as prateleiras facilmente substituídas por pastas.

Claro que as coisas têm sabores diferentes: assim como é diferente ler um livro ou ler o mesmo texto no computador, é diferente ir ver um filme ao cinema ou vê-lo em casa no computador, é diferente ter um disco de vinil ou um CD original ou “sacar” esse mesmo disco e capa da Internet. Uma coisa não impede a outra. O futuro pode eventualmente passar pela Internet mas as outras coisas não têm de desaparecer por causa disso. As coisas vão assumindo espaços próprios e conquistando os seus lugares.

Umbigu, Pedro Ferreira, The Rose Buttons e Zurrapa – são estes os quatro projectos sob a concepção gráfica do Cãoceito. Queres apresentá-los sucintamente?

Umbigu (“Anatomia Electrónica”) foi o primeiro projecto que a Cãoceito editou. É um projecto individual de um músico – David Francisco – e move-se dentro dos ambientes da música electrónica. Este projecto tem uma componente de banda sonora que pode preencher o espaço de um teatro, instalação, vídeo ou outras situações.

Pedro Ferreira (“E Se Abanasse O Corpo Como Um Estremecimento E Por Baixo Dele Deixasse De Haver Erva”) é o trabalho de um músico e artista plástico. Este conjunto de experimentações e apontamentos que o Pedro já andava a fazer há algum tempo e que estavam “na gaveta” constituem um universo próprio muito peculiar. A sua música funciona muitas vezes como continuação do seu trabalho enquanto artista plástico.

The Rose Buttons (“The New House Off Little Porcs”) é um projecto iniciado em 2002 por João Cordeiro e Alexandre Aguiã, a quem posteriormente se juntaram dois elementos (Pedro Oliveira e Carlos Martins) da extinta banda Eborense Smoke The Pipe, projecto do qual o próprio João Cordeiro fez parte. Banda que se divide entre Évora, Coimbra, Porto e, mais recentemente Caldas da Rainha, conta com vários convidados – Hugo Frota, vocalista dos Houdini Blues, Alexandre Oliveira e Filipa Oliveira –e o som move-se entre umas “guitarras sónicas e um baixo a saltitar” em ambientes electrónicos e dança.

Zurrapa (“Armadilha Engolida De Vidro”) é um projecto de três elementos – Pedro Ferreira, Pedro Januário e Nuno Messias. Possui uma linguagem muito singular e com um ambiente muito próprio. Cantam em português.

Existe algum requisito específico para as bandas que o Cãoceito abraça?

Não temos restrições quanto a géneros musicais. O Cãoceito trabalha com projectos que se identifiquem com a filosofia segundo a qual o nosso trabalho se desenvolve e que tenham vontade de trabalhar connosco. O nosso comprometimento é sobretudo com a embalagem, tratamento gráfico e preocupações de comunicação. Claro que é importante para nós, tanto gostar dos projectos musicais, como trabalhar com projectos que consideramos ser de qualidade.

Podem adiantar se existe algum (ou alguns) projecto(s) na forja do Cãoceito para um futuro próximo?

Existem já alguns projectos para breve. A nível de lançamentos o próximo a ser editado, e que é já para muito breve, tem por nome CMYK e junta Ivan Lopes (que toca game boy, brinquedos electrónicos feitos em casa e laptop), J. Trindade (nas cassetes e brinquedos), Arthur Chorosky (no saxofone e na parte electrónica) e Arthur Pereira (na percursão).

Para além dos projectos de concepção das embalagens e imagem gráfica dos CD-R, o Cãoceito encontra-se a desenvolver em paralelo outros trabalhos de comunicação que resultaram de encomendas (directa ou indirectamente ligadas à música). Se alguém se mostrar interessado na prestação dos nossos serviços para criar outros objectos de comunicação que não embalagens para CD-R e se nós estivermos livres para o fazer, então não vemos porque não fazê-lo.

Não posso finalizar esta conversa sem fazer a pergunta obrigatória: quais os projectos futuros do Cãoceito?

A par dos projectos que estão e ser desenvolvidos e que já foram referidos, a Cãoceito encontra-se a preparar uma série de eventos a terem lugar em Coimbra no mês de Março. Vamos ter uma exposição acerca do modo de concepção e produção da Cãoceito na Livraria XM que vai inaugurar dia 9 de Março e está patente até dia 25 de Março. No espaço da Galeria Bar Santa Clara haverá concertos às quartas-feiras de projectos editados pela Cãoceito (com datas ainda por confirmar).

 



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