Faustin Linyekula
“Quando a Europa olha para África, sabe explicar tudo…”
Aos trinta e cinco anos Faustin Linyekula, bailarino e coreógrafo congolês, distingue-se já no universo da dança contemporânea em África. Depois de ter estudado Literatura e Teatro em Kisangani, instalou-se em Nairobi em 1993. Em 1997 foi co-fundador, com o artista mimo Opiyo Okach, da primeira companhia de dança contemporânea do Quénia, a companhia Gàara. Vive e trabalha, desde 2001, na cidade de Kisangani, onde criou Studio Kabako, estrutura que se dedica à investigação e criação na área da dança e do teatro visual e que tem um papel importante na criação e desenvolvimento de uma rede de centros culturais relacionados com as artes do espectáculo e do audiovisual nos diversos bairros da cidade.
Brenda Dixon Gottschild, académica americana que se dedica a estudar a influência da presença africana na dança contemporânea, sublinha que Linyekula, dadas as suas oportunidades na Europa, escolheu “o caminho de maior resistência”. Como que lhe dando razão, o Prémio do Prince Claus Fund para a cultura e desenvolvimento, em 2007, veio destacar a importância cultural do seu trabalho artístico e o facto de ter escolhido regressar ao Congo, apesar da grande instabilidade política, económica e social que se vive neste país. Os últimos anos têm sido decisivos para a presença do seu trabalho em festivais europeus, principalmente na Bélgica e em França, onde em 2009 montou, na Comédie Française, “Berenice”, de Racine.
Se a sua vida fosse traçada a régua e esquadro, provavelmente Faustin teria seguido o curso que ele e os seus pais planearam: a universidade, onde estudaria Direito ou Biologia. Mesmo que desde os quinze anos se sentisse inclinado para a expressão artística, primeiro a poesia, depois a prosa e o teatro, pensava fazer isso como uma actividade paralela à actividade profissional:
“Porque é preciso dizer, quando se nasceu e se cresceu num país como o Zaire, na época (o Congo no período de Mobutu), não tínhamos referências que nos permitissem imaginarmo-nos artistas. Os advogados, os médicos, eram os nossos modelos. E nós projectamo-nos nas referências que temos à nossa volta.”
Só que entretanto rebentou a guerra e ela levou-o a um interregno forçado nos seus estudos. Para não ficar em casa a perder anos e tempo, dedicou-se totalmente ao teatro. Como diz a Roger Marchand, naqueles tempos conturbados o “teatro permitia-lhe pensar o mundo, criar o seu próprio mundo”. E quase vinte anos depois tem consciência de que alguma coisa mudou e que “hoje os jovens podem ter também o meu exemplo, porque eu represento qualquer coisa no Congo e em Kinsagani, a cidade onde vivo.”
Quando conversámos, em Novembro, no final de um ensaio no Teatro Maria Matos, estava muito cansado. O ensaio tinha acabado muito tarde, as questões técnicas tinham atrasado o programa, e mesmo que isso seja normal num espectáculo onde o som e a imagem estão permanentemente presentes, notava-se-lhe o desgaste. Percebi depois, a minha primeira questão podia ser entendida como uma pequena provocação. Dissera-lhe que depois de ouvir a entrevista que Roger Marchand lhe fez, tinha ficado com a inquietante dúvida de que se não tivesse havido uma guerra, hoje poderíamos não estar ali a falar sobre o seu trabalho de coreógrafo. Será que isso poderia querer dizer que há algo de positivo na guerra?
“Não sei se há qualquer coisa de positivo na guerra. É claro que isso me obriga a reagir, isso força-me a tomar a palavra, e no trabalho de hoje, no que eu faço, sou incapaz de falar das flores e da beleza de um pôr-do-sol, porque se eu vejo uma flor muito bela, se eu me detenho num belo pôr-do-sol, preciso de viver isso, não preciso de me retirar para especular sobre a beleza. Porque criar é retirarmo-nos do mundo.”
Criar é retirarmo-nos do mundo?
“Para melhor o vermos. Para termos uma maior distância. Tomar a distância em relação ao mundo para melhor o vermos, para melhor o escutarmos, para melhor falarmos dele. Ora, eu não preciso de me retirar quando qualquer coisa me faz mal. Eu devo ficar e viver intensamente esse momento. Provavelmente isto remete para a questão inicial. A crise, não… a guerra não tem nada de bom.“
Era a sua convicção, a determinação, e ao mesmo tempo a serenidade com que falava que me começaram a fazer compreender quanto era diferente aquela pessoa que tinha ali à minha frente. Muitas das coisas que me dizia já as tinha encontrado escritas, ou ditas, nos diversos materiais textuais e audiovisuais que serviram de preparação à nossa conversa. Faustin Lineykula tem já um discurso estruturado, a curiosidade que o seu trabalho desperta na Europa certamente faz com que seja muito solicitado para entrevistas e que muitos de nós lhe perguntemos as mesmas coisas. Como, inevitavelmente, quando falamos do Studio Kabako, onde ele tem consciência de que, ao fim de oito anos de trabalho, está a criar referências para outros jovens:
“É uma estrutura a que chamamos de companhia, Studio Kabako. Estúdio porque é um espaço onde sonhamos formas possíveis de viver o mundo, maneiras de o construir. A ideia inicial era a de criar um espaço onde fosse possível, em conjunto, inventarmos um outro mundo. Porque não há nenhum interesse em estarmos sós num país como o Congo. Ficamos muito frágeis, sós. Precisámos de abrir este espaço na esperança de que isso pudesse também ser como um vírus que contaminasse os outros. Claro que mantemos a lucidez, sabemos que não podemos mudar radicalmente o Congo, mas podemos agarrar algumas pessoas. Cada vez mais me rodeio de pessoas que têm qualquer coisa a dizer, de pessoas que têm coisas muito profundas a dizer, como Flamme, como Papy, como todas as pessoas que acompanham este projecto. Quanto mais forte ele se tornar, tanto mais possibilidades terá de servir de exemplo e aí, é uma utopia, sem dúvida, não precisaremos de partir do Congo.”
Dizes frequentemente que tomas a palavra na praça pública num país onde não há verdadeira liberdade…
“Exactamente. Tomamos a palavra na praça pública num país onde a palavra na praça pública não tem o direito a existir. E assim este gesto pode desde logo interrogar os outros que ficaram no seu canto. Porquê? Porque é que eles fazem isto? Podemos também nós ousar tomar a palavra? É a consciência de estar num sítio onde as coisas não são dadas. É preciso tomá-las, fazê-las nossas, mas ao mesmo tempo não somos suicidas. Porque é importante fazermos isso mas sem amanhã irmos parar à prisão, ou desaparecermos. É como se negociássemos com este contexto onde a palavra não tem direito a existir. Não queremos viver como carneiros mas queremos seguir vivos e livres. E essa luta pode inspirar outros a fazerem o mesmo, e que vão perguntar-se, o que é que eles estão a fazer ali?”
É o princípio da celebração da beleza de que falas no vosso site?
“É isso. Celebrarmos a beleza entre nós. Eu sei que sou frágil, às vezes sinto mesmo que talvez estejamos a ir muito depressa, porque há coisas que não controlamos, mas há um momento em que sabemos que não estamos sós e isso é muito bom.”
Em vez de comprares um Mercedes como as estrelas pop do ndombolo, vais financiar o teu trabalho? Como é que isso é visto?
“Por um lado há pessoas que não compreendem muito bem que haja alguém que tome o seu próprio dinheiro para investir num sítio que depois não tem nenhum retorno, porque não ganhamos dinheiro com este projecto. Studio Kabako é um espaço onde perdemos dinheiro. E como vivemos num país onde todas as pessoas tentam agarrar tudo o que podem, elas não compreendem muito bem, mas eu sei que se interrogam. Por exemplo, dia 3 de Outubro, organizámos um espectáculo com um cantor de Kinsagani, e foi a primeira vez que a luz, o som, a técnica, estavam bem, as pessoas ficaram mesmo contentes, e quando estávamos a desmontar houve pessoas que vieram ter comigo e me disseram que eu me devia candidatar a deputado municipal, porque eu ao menos pensava neles. É claro que não me interessa pensar neste jogo político mas interessa-me saber que começam a compreender o que fazemos.”
No final do texto de apresentação de Studio Kabako dizes, “para aqueles que pensam que perdemos o nosso tempo”…
“Há muitas pessoas que não me compreendem. Mas que vêem que eu não tenho fome, que não tenho de pedir, que vou e venho do Congo para a Europa. Hoje a situação é tão dura no nosso país que todas as pessoas sonham em sair do Congo, em partir. E eles vêem-me partir para a Europa, quando eu vou eles pensam, ele vai para o paraíso, mas quando me vêem voltar, ficam baralhadas, não compreendem muito bem, mesmo que cada vez mais me respeitem por causa disso, não compreendem muito bem porque é que volto.”
Falei-lhe de que a coreógrafa angolana Ana Clara Guerra Marques tinha referido que no início do seu trabalho em Angola tinha tido alguma dificuldade em colocar homens a fazerem dança contemporânea e clássica, porque eram objecto de chacota, de comentários marialvas. Perguntei-lhe se no Congo também tinha o mesmo problema ao trabalhar o movimento dos corpos dos homens. E pela sua resposta percebi porque é que não tinha visto nenhuma mulher em cena:
“Não. No Congo o que é complicado é conseguir ter mulheres a dançarem connosco. É mais difícil encontrar mulheres do que homens, é difícil fazer com que as mulheres vão para cena, fazê-las tomar a palavra, o movimento do seu corpo com liberdade, sem pudor, sem o olhar intimidatório da sociedade, sem sentirem que são pequenos objectos sexuais. Não, no Congo isso não acontece com os homens.”
Falámos sobre “More, More, More… Futur”. Trata-se – como se refere na reportagem publicada em Dezembro – de um trabalho a partir dos ritmos do ndombolo, explorados a partir de extremos como o grito e a canção de embalar. Que estabelecia um ponto de vista crítico sobre o ndombolo e a vida da sociedade congolesa, das noites de Kinshasa e que Faustin trabalhou com Flamme Kapaya, músico. Por causa disso tinha curiosidade em saber como é que Kinshasa tinha visto o espectáculo. Os espectadores reconheceram-se nele?
“Quando representámos em Kinshasa foi tudo muito imprevisível. Muitas vezes as pessoas falavam e interpelavam-nos, e em muitos momentos as pessoas perguntavam, porque é que nos fazes isto? Porque é que nos fazes isto, Flamme?, e reclamavam e exigiam outras canções, canções que os ajudassem a esquecer. Nós utilizávamos a mesma energia mas num sentido diferente… E eu comecei a tentar entender esta questão… Porque é que nos fazes isto, Flamme?
Faustin associa várias vezes o ndombolo a movimentos como o punk, para tentar explicar a diferente atitude que têm. Em relação ao punk, fala da energia. Digo-lhe que achei curioso porque muitas vezes quando se fala desse movimento, fala-se em termos de violência, e em “More, More, More Futur”, o que também encontrei foi um trabalho permanente sobre a violência enquanto energia:
“A violência está ali, presente… e pode ser bela. A violência pode ser bela. Se nos detemos na observação da violência, ela própria, se isso nos permite aprofundar o nosso olhar, o nosso olhar deste choque, deste confronto, então torna-se numa violência que leva ao nascimento de outras coisas. Claro que se abordamos o movimento punk, podemos dizer que se fundaram no slogan No Future de uma forma totalmente niilista. Nós queremos interrogar o futuro. Queremos mais, mais, mais futuro.“
No entanto “Vamos instalar o apocalipse aqui e agora” é quase que um refrão do espectáculo…
“Para nós o apocalipse não é o fim, mas o princípio de um novo tempo…”
E de nós? O que esperas de nós? De nós que não sabemos o que é uma guerra, de nós que não conhecemos África…
“Eu sei que há um grande número de pessoas hoje em dia que não viveram nenhuma guerra. A guerra é uma situação extrema que nos permite voltar a nós mesmos. Espero que através da proposta deste espectáculo, o espectador possa chegar a um momento em que também se pergunte: “O que é que se passou comigo?”. E parece-me que não podemos compreender tudo. Conseguir dizer que não compreendemos parece-me uma boa coisa. Uma muito boa coisa! Na maior parte da vezes quando a Europa olha para África, sabe tudo. Sabe explicar tudo. É por causa disso, é por causa das etnias, é por causa da corrupção, isto é África… E por vezes não compreendemos mesmo tudo. E talvez seja aí que possamos começar a falar, a falar verdadeiramente. Provavelmente é aí que tudo pode começar, quando chegamos ao ponto em que percebemos que a vida é mais complicada do que parece e que nunca chegaremos a explicar tudo. Será que podemos parar um momento e escutarmo-nos, para lá dos clichés, dos estereótipos? E provavelmente colocar a questão, O que é África?, colocá-la através do corpo, pode instalar o incompreensível no meio dos discursos…”
Dizes que a arte não é o mais importante. Eu tenho dificuldade em acreditar nisso quando vejo o teu trabalho…
“Para mim a arte é extremamente importante. Quando eu cheguei ao Congo, percebi que a arte era muito importante para mim, mas que, ao mesmo tempo, não é o mais importante aqui. O mais importante é mostrar que podemos acreditar nalguma coisa num contexto em que é dificílimo acreditar. Mesmo em Deus… Se eu encontro alguém e digo que sou artista, há qualquer coisa que é como uma impostura, uma impostura social. Um papel. E eu digo que isso não é o mais importante. Mesmo se hoje toda a minha vida se construa em torno dela. Interessa-me a arte como uma relação com o mundo, e por isso quando digo que a arte não é o mais importante, é isso que quero dizer, não me interessa assumir essa atitude. Interessa-me muito mais perceber o que é que eu posso dar, o que podem receber de mim, porque a vida também me dá todos os dias muitas coisas. Cada um de nós no seu domínio se interroga, se questiona, e isso é o mais importante, não é dizer que sou artista. O importante é a vida e conseguirmos chegar a pensar que valeu a pena vivê-la. E conquistar os meios para que isso possa acontecer. Porque nada é dado. É difícil mas vale a pena estar aqui. E isso é o mais importante.”
Quando acabei a entrevista e me despedi do Rui Freitas, que fizera a reportagem fotográfica, senti que provavelmente, na minha ilusão de que tinha Linyekula dentro do meu gravador, eu, tal como os seus conterrâneos, talvez também não o compreenda. Na sua dignidade, na sua enorme coragem psicológica, física. Faustin Linyekula, um artista que escolheu o caminho mais difícil.
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