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Do Céu para nós

Entrevista com Neil Hannon aka Divine Comedy, o grande artista da pop de culto do nosso tempo.

Neil Hannon é uma pessoa em palco, e outra fora dele. Em palco é espontâneo, cómico, génio da improvisação e sempre comunicativo; fora dele é sério, calmo, de sorriso cordial mas simpático, com quem se tem facilmente uma boa conversa. Foi com este segundo, com rasgos do primeiro, que falei, a sós no seu camarim no Maria Matos, no dia do seu primeiro de dois concertos naquela sala. A entrevista estava marcada para ser de 15 minutos mas, quando o seu manager entra para me dizer que o tempo acabou, Hannon responde “Não, não, dá-nos só mais cinco minutos”. Um quarto de hora depois ainda lá estávamos, em conversa animada, com intimidade estabelecida após uns quantos minutos a falar de Scott Walker. “O meu disco favorito dele é a minha própria compilação pessoal”, diz-me. “Têm todos coisas boas e coisas más. Quer dizer, o “Scott 4”, por exemplo… sim, a «The Seventh Seal» é uma canção espantosa, mas depois oiço a «Duchess» e fico logo de pé atrás. Acho que as minhas canções favoritas dele estão no “Scott 4”, mas posso dizer o mesmo das que menos gosto”. Fala enquanto vai bebendo uma cerveja, de forma honesta e calma. “O que te posso eu dizer?”, perguntou-me ele com um sorriso, no início da entrevista. A resposta era simples: muita, muita coisa.

Os Divine Comedy sempre foram um projecto de Hannon. Foi ele quem, em grande parte das canções, tratou de todos os arranjos e foi sempre ele quem escreveu todas as letras. Os membros da banda iam mudando ao longo do tempo e quando, após a saída de “Regeneration”, esta se separou, nada mudou. Hannon arranjou novos músicos, foi em tour, e o seu som continuou o mesmo. Mas agora, há algo de diferente: pela primeira vez em vinte anos de carreira, o músico embarcou numa digressão a solo.

“É a minha primeira digressão a solo e decidi fazê-la por várias razões. Primeiro, nunca tinha feito uma antes. Segundo, sempre o quis fazer; alguns dos meus artistas favoritos consistem apenas num músico e num piano. Terceiro, é barato. Quarto, o álbum em si baseia-me muito em piano, por isso fez bastante sentido”. Curioso, já que o próprio Hannon disse várias vezes não ser muito bom nem como pianista nem como guitarrista. “Bem, melhorei ao piano, mas não melhorei nada em guitarra. Depois do último disco, comecei a escrever um musical, não aquele sobre cricket, um outro que vai estrear em Bristol daqui a uma semana; algo espantoso para mim, depois de quatro anos a trabalhar nele. Escrevi esse musical todo em piano e pensei ‘Bem, se me prender ao piano e me manter afastado do computador, escrevo muito mais depressa e não me atraso com nada’. E reparei que em muito pouco tempo fiquei muito melhor nesse instrumento. Nunca consegui concordar com a noção de praticar, mas agora percebo… a prática faz mesmo a perfeição. E naturalmente comecei a escrever outras canções também através desse método e… yeah, agora sou muito bom ao piano!”, diz o músico com um sorriso.

O facto de Hannon escrever músicas dessa forma e se manter bem afastado de qualquer tipo de tecnologia, até agora quando está a solo – e talvez um ou outro sampler ou um ou outro sequenciador pudessem dar jeito – sempre foi uma marca da sua música. Mas não algo propositado; foi, simplesmente, algo que ao longo de vinte anos, nunca lhe apeteceu. “Eu nunca disse que não a nada, e não é por razões de princípio nem nada de género. Eu apenas gosto de… bem, instrumentos a sério. A realidade é que se tiveres vários instrumentos a tocar numa sala ao mesmo tempo ficas com algo que não tens simplesmente com samples num computador. Quer dizer, ficas com o som da sala, por exemplo, e parece tudo feito por pessoas a sério. Uso o computador quando estou a escrever canções, claro, e aí é muito útil porque posso ouvir logo antes de estar tudo feito de forma correcta”.

Passaram-se quatro anos entre “Victory for the Comic Muse”, lançado em 2006, e este “Bang Goes the Knighthood”, lançado este ano. O maior período de tempo que Hannon alguma vez esteve sem editar um novo álbum. “Bem, culpa isso aos musicais e ao álbum sobre cricket… Foi basicamente por causa disso. Eu queria, sem sombra de dúvida, fazer um álbum, mas isso demora tempo. Se fosse há dez anos atrás, certamente tinha pensado “Oh não! Isto é terrível! Como é que posso estar sem fazer nada durante tanto tempo?”, mas agora é tudo diferente porque… bem, eu não sou um grande artista dos tops de vendas da música pop e acho que depois de teres feito o número de álbuns que já fiz e de estares neste negócio tanto tempo, simplesmente não queres estar constantemente à frente da cara das pessoas; por mais que elas digam que gostam de ti, elas aborrecem-se e acabam por se fartar. Por isso acho que é bom, à medida que o tempo vai passando, ires deixando um espaço maior entre cada disco”.

Divine Comedy nunca foi um monumental sucesso dentro do pop, e nunca há-de ser. Hannon sempre afirmou ter a sorte de ter um nicho de público muito fiel (um grande, grande nicho!), e isso é, afinal de contas, uma faca de dois gumes: pode ter sempre um público que o vai ouvir, mas após tantos anos esse mesmo público já sabe bem o que esperar e, acima de tudo, o que exigir. “Percebo bem o que queres dizer, e é perigoso. Mas acho que… primeiro de tudo, eu não falo com o meu público. Quer dizer, em concertos falo imenso, mas imensa gente tem longas conversas com os seus fãs na internet, e acho que isso é muito mau!”, termina, com uma gargalhada. Mas porquê esta separação? Os olhos do músico fixam-se na garrafa de cerveja e, por alguns segundos, não sabe o que dizer. “Bem, eu não estou a escrever música para os meus fãs, apesar de serem, claro, muito, muito importantes, e eu tento chegar ao maior número de pessoas possível. Para ser honesto, a razão pela qual tenho sequer fãs é porque faço a música que quero fazer. A partir do momento em que começo a fazer música que eles querem ouvir, isso desaparece tudo. Tenho de fazer exactamente aquilo que quero, senão não há propósito”.

E mesmo após tantos anos e um público grande e fiel, Hannon nunca sente pressão de mais ninguém sem ser ele mesmo. “Exerço imensa pressão sobre mim mesmo; eu sei do que sou capaz e trabalho para atingir esse potencial. Sou o meu maior e mais feroz crítico, não preciso de mais ninguém para me dizer quando não estou a fazer as coisas bem”. Perante tal perfeccionismo, a perfeição absoluta é, aos olhos do músico, impossível. “Estou tão satisfeito com este álbum quanto estive com todos os outros. Quer dizer, nunca estás 100% satisfeito. Imaginas sempre uma coisa e trabalhas o máximo possível para atingir isso que imaginas, mas nunca o atinges. Caso contrário, estarias no estúdio para sempre como o Bryan Ferry ou o Scott Walker”.

Perfeccionista e reservado; não é por nada que Hannon por várias vezes já se descreveu como “Um homem velho nascido no corpo de um homem jovem”. “Sim, disse isso imensas vezes. Nunca fui muito bom a ser sociável, quando era novo. Nunca fui bom em clubes ou em grandes festas, e acho que sempre quis estar a usar um robe enquanto fumava um cachimbo. E à medida que envelheces, as pessoas vão deixando de se rir com isso. Portanto, à medida que vou envelhecendo vou ficando mais confortável comigo mesmo. E é assim que as coisas devem ser”, diz com um sorriso.

Crescimento esse ao longo do qual Hannon foi escrevendo e lançando discos. É, portanto, impossível para o músico não associar cada álbum a uma certa fase da sua própria vida. “O ouvinte não ouviria, mas muitas das coisas sobre as quais canto são muito pessoais, mesmo que não soem a tal. É difícil de explicar… É mais sobre as escolhas que fazes em relação ao que queres escrever. É… é dizer a ti mesmo para não escrever sobre algo, mas acabar por o fazer na mesma. Não sei se isto faz sentido ou não, mas…”. Completo sentido? Jamais poderia fazer. Afinal de contas, não somos nós que fazemos aquelas canções. Apenas as ouvimos.

Mas Hannon sempre teve, claro, um estilo muito particular. Veja-se o tipo de humor que usa, por exemplo; o tom com que as músicas de Divine Comedy são escritas sempre foram constantes. “O tom é muito importante, e se há algo que não queres é que algo soe fora do lugar. Quando estás a criar uma canção, crias primeiro um tom, e depois a partir daí tentas explorar isso, e se algo não parece certo dentro do que queres criar, então tens de corrigir isso. O meu escritor favorito, que também escreve peças, é o Alan Bennett, e ele consegue dizer coisas muito profundas falando sobre uma chávena de chá ou um biscoito. Se há alguém que pode servir de modelo, é ele. Acho que é aquela a forma mais verdadeira de escrever sobre algo. Não estás sempre a tentar fazer grandes afirmações, queres apenas que as pessoas percebam onde queres chegar através de pequenos detalhes”.

Hannon não quer ser um grande e famoso músico, e a forma como escreve e a música que faz não são, de facto, algo que apele às massas. Veja-se, por exemplo, o facto de o músico nunca ter conseguido ter sucesso nos Estados Unidos. “Bem, tens de estar grato com o que tens!”, diz com um sorriso. “Foi um milagre quando fui a França pela primeira vez e as pessoas me queriam ouvir. Depois foram os sucessos no Reino Unido e começámos a tocar aqui e acolá, e nós tentámos nos Estados Unidos, mas eles obviamente não se ralaram. Temos alguns grandes fãs lá, mas é preciso reconhecer as nossas próprias limitações”. Ainda assim, a indústria musical (“O que sobra dela!”, diz Hannon) está hoje mais aberta em relação ao que era antes. Supostamente. “Acho que é muito fácil a alguém colocar a sua música onde a possam ouvir, mas é muito difícil fazer dinheiro disso. O que muita gente não percebe hoje em dia é que a margem de lucro é muito, muito pequena. O problema é que as pessoas não querem pagar para ter música, quando a podem ter de graça. Não é que as pessoas sejam criminosas, apenas são preguiçosas. Se podem ter algo de forma rápida e sem pagar, claro que o fazem”.

Todos os problemas de pirataria, ainda assim, não o preocupam por aí além. “Acho que há alguns da minha raça, os que pensam que não tem só a ver com a música; o pacote também é importante. E acho que os meus fãs são do género que querem tudo. Provavelmente além de comprarem o álbum, também o arranjam de graça!”. Mais à frente, quando lhe digo que efectivamente concordo e que não tive problema nenhum em comprar o álbum, Hannon diz “Também devias comprar o vinil”. Quando lhe digo que não tenho leitor de vinil, este responde com ironia “Bem, então que oportunidade perfeita para comprar um!”.

Este pequeno rasgo de humor foi algo que se viu frequentemente no concerto que deu no dia a seguir, onde sozinho em palco, de guitarra e piano, deu aquele que foi um dos melhores espectáculos do ano. Um Maria Matos esgotado dois dias consecutivos, com um público perfeitamente rendido ao intimismo perfeito do que se via. Um homem em palco sozinho, que conquistou centenas. “Acho que há um mercado possível para… err… produtos de extrema qualidade?”, continua com uma risada. “Acho que de um lado tens a música pop rasca que se globaliza tanto que acaba por fazer dinheiro, e do outro tens a música pop mais pequena mas de qualidade, que ganha dinheiro dando às pessoas coisas boas. Eu trabalho algures no meio dos dois”, termina com um sorriso.

Quando a conversa se virou para Scott Walker e para gostos musicais, a entrevista descambou numa conversa que poderia ter continuado pela noite toda. Ao queixar-me do quão recluso é o autor, Hannon interrompe-me dizendo, enquanto revira os olhos, “Eu conheci-o, uma vez…”. E perante o meu ar invejoso, partilhou a história de como conheceu o homem que pegou nas canções de Brel e fez delas suas. “Bem, se hoje em dia o quiseres ver ao vivo ou conhecê-lo tens de fazer como eu fiz. Estava a trabalhar na mesma editora que ele mas noutro estúdio, e então basicamente obriguei um dos engenheiros de som a dizer-me onde é que ele ia estar em determinado dia. Depois fui para lá e fiquei ao frio à espera até ele sair. Era novo…”.

Em relação ao que ouve, tem bom gosto, mas admite que a música hoje em dia não lhe pode ser complicada. “Oiço muito Randy Newman, jazz… e muito synth pop, dos anos 70 e 80. E ocasionalmente oiço algum indie dos finais dos anos 80, para relembrar os bons velhos tempos. E… Rufus Wainwright, também. Ah, e Arcade Fire e coisas assim. Mas parece-me cada vez mais difícil entrar na música de hoje em dia, e detesto dizer isto porque me faz sentir como um velho rezingão!”.

Olha para o relógio, fica surpreendido com as horas, e pede imensa desculpa mas “Acho que vamos ter de terminar, ainda há mais um para me entrevistar e já aqui estamos na conversa há imenso tempo”. Levantou-se e acompanhou-me até às escadas, sempre simpático, agradecendo e dizer que “Foi bom estar aqui na coscuvilhice sobre o Scott!”. Quando me aperta a mão e se despede, passava-me pela cabeça o quão brilhante e único era este homem que hoje conhecia, e que amanhã iria finalmente ver ao vivo.

No dia seguinte, o homem que vi em palco foi o mesmo e simultaneamente outro diferente. Mais espontâneo, com constantes tiradas de genialidade, e a demonstrar exactamente aquilo que me tinha dito: é óptimo ao piano. E na guitarra também não se safa nada mal. Num concerto absolutamente genial que percorreu toda a sua carreira, Neil Hannon mostrou bem o quão notáveis foram aqueles vinte anos a fazer música.

“Espero que tenhas tudo o que precisas”, disse-me, no final da entrevista. Ter, tenho; mas queria ainda mais. Dele, haveremos de querer sempre mais. Que venham mais vinte, tão espantosos como os que já passaram. E outra noite como a que deu no Maria Matos. Neil Hannon não mente: com ele, de noite, voamos.



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