Rapace

João chegou e “Rapace” venceu. A RDB no Festival de Cinema de Milão.

Sobre João Nicolau

Nasce em 1975, em Lisboa, Portugal. Estuda Antropologia, mas cedo se cansa da “escrita ensaística e começa a interessar-se pelo potencial do discurso fílmico”. Findos os estudos, realiza como tese do Mestrado de Antropologia Visual na Universidade de Manchester, em 1999, o documentário “Calado Não Dá (You Can’t Live With Your Mouth Shut)”. De regresso a Portugal (2000) trabalha na montagem de ficção e documentários, actividade que inicia a desempenhar como profissão. Em 2005 “desafia-se” a realizar uma curta-metragem de ficção e “vence-se” com “Rapace (Bird of Prey)”. Vive em 2006, em Lisboa, Portugal e prepara a rodagem da longa-metragem documental “Da Prisão” (título de trabalho).

Chegada

Milão, sábado 23/Set/2006, 22:00. Dirigimo-nos ao Teatro Strelher, no Largo Grepi 1. É a projecção final das curtas do Milano Film Festival e na lista dos filmes consta um nome português (João Nicolau), razão mais que suficiente para não a perdermos. Chegamos e, mais que nos outros dias e horários, a sala está cheia e o teatro decide abrir a plateia superior. Encontramos 3 lugares livres esquecidos nas primeiras filas (sempre melhor que ver o ecrã em versão microscópica).

22:30. A sessão inicia com cada realizador (a maior parte, entre os quais João Nicolau, acabada de chegar à cidade para assistir às ultimas projecções) chamado ao palco no final da exibição do próprio filme para o comentar com o público. As curtas sucedem-se com a assistência manifestando o seu entusiasmo e por fim chega “Rapace”. João Nicolau, ao contrário dos realizadores dos filmes precedentes, vem chamado ao palco antes da exibição do filme (conhecendo os organizadores a perícia do público em evacuar a sala em tempo record), mas o realizador prefere não comentar a priori. Oferece-se para o fazer no final, e, agradecendo a presença do público, manifesta o seu orgulho e respeito por “ver o seu filme projectado num teatro com o nome de Giorgio Strehler”. Tem início a última das 51 curtas-metragens do MFF 2006: “Rapace”.

Visão

Estendem-se pela tela 25 minutos (os únicos) de cinema português em Milão. A história é simples (QB numa curta) e cito a sinopse: “Cumpridas as obrigações académicas, Hugo passa os dias em casa descansando a cabeça de intermináveis leituras de autores pouco conhecidos. Dorme muito e a desoras. A sua única companhia doméstica é Luísa, a empregada, que alinha com ele em cúmplices jogos do gato e do rato. Para afugentar o sono da razão, Hugo exercita a veia lírica escrevendo, com o amigo Manuel, canções sobre o bairro onde ambos habitam. O plácido diletantismo do protagonista é abalado por Catarina, uma jovem e bonita tradutora que dá os primeiros passos na vida profissional em regime free-lancer. Hugo está pelo beiço, fraqueja. Lá em cima, o peneireiro peneira. Não é o único rapace capaz de fazê-lo.”

A história, como se dizia, é simples. O resto é habilidade artística do realizador, dos actores e da montagem. E que mestria! A monotonia inicialmente gerada pelo tom monocórdico da voz de Hugo (Hugo Leitão) rapidamente se desvaneceu perante o enquadramento perfeito entre essa mesma monotonia e a ociosa, um pouco mimada e muito sensível personagem. É então que, finalmente, pressinto o que distingue boa parte do nosso cinema de o de muitos outros países europeus: o teatralismo da nossa ficção e uma certa dose de surrealismo ou imaginário-maravilhoso (não sempre, mas frequentemente presentes), mais que na ideia do filme em si, na concreta realização do mesmo.

Pouco a pouco, o público na sala deixa-se maravilhar pela sucessão de eventos do monótono quotidiano de Hugo, contados, cada um deles, com deliciosas pinceladas de “irrealismo” (para evitar um termo, talvez um pouco abusivo e invasivo para com o realizador, como “surrealismo”). Este irrealismo é conseguido essencialmente através de um criativo jogo entre o áudio e o visual do filme. Hugo conversa ao telefone sem usar o mesmo. Escuta fixando com o olhar um CD pousado em cima da mesa de um café público, no qual o amigo gravara a base rítmica para uma nova música. (Obviamente, abanando ambos a cabeça em sincronia com o tempo da batida, detalhe que um apreciador de música não deixa passar despercebido em frente ao grande ecrã, mas que infelizmente nem sempre é preocupação da montagem no cinema.)

Mas, o melhor deste irreal mundo (nas palavras do autor) “algures entre o sono e o sonho” chega com o “grande final”: the party. Uma sala completamente branca, onde absolutamente tudo é branco (leia-se “turntables incluídas”). Em forte contraste com este “branco geral” passeiam pela sala as vestes coloridas dos actores “em festa”. A cena abre em grande classe. Olhos fascinados perante as cores vivas de uma autêntica tela a óleo e ouvidos estimulados por um único e omnipresente som: o dos cubos de gelo tilintando nos copos que rigorosamente todos seguram na mão (acompanhado naturalmente de alguns ruídos de fundo que asseguram a coerência lógica entre a imagem e o som), nenhuma voz apesar das pessoas falarem entre elas… Portanto, passos, gelo, zero voz, zero música. Segue-se o verdadeiro momento da festa e dança-se. Começa a música, que dificilmente poderia ser melhor escolhida, e as coreografias “espontaneamente ensaiadas”. O elogio requintado a todo o “irrealismo” do filme desenhado numa dança de transe colectivo capaz de hipnotizar o olhar com coreografias minuciosamente preparadas e ensaiadas… bem, talvez seja justo deixar alguma surpresa para a exibição do filme nos cinemas.

Conclusão

Quando o ponteiro atinge o último frame na time-line, o teatro Strehler volta a ser inundado por uma onda de aplausos. João Nicolau volta a subir ao palco e desta vez é questionado sobre o porquê do título. Define rapace, mas a senhora no público não se sente satisfeita e pede mais explicações “(…) em suma é um filme um pouco confuso, não nos pode explicar um pouco qual a relação com o titulo?”. Pergunto-me em voz baixa se se trataria de uma acusação, mas na verdade não era mais que o estilo “poucas papas na língua” da cultura italiana e se tem dúvida ou quer saber mais está no seu pleno direito em perguntar sem qualquer embaraço. Mas está também no seu direito João Nicolau ao recusar oferecer-lhe uma explicação, seguido de mais uma onda de aplauso espalhada por todo o cinema, com o “fugitivo” público entretanto a acelerar na direcção da porta. Exactamente vinte e quatro horas depois, “Rapace” era nomeado (por um júri unânime) como o vencedor da 11ª edição do Milano Film Festival.

“Repace” tem estreia marcada para dia 12 de Outubro nos cinemas nacionais. A primeira curta-metragem de ficção de João Nicolau, chegará ao cinema acompanhada da média-metragem “As duas Vidas da Serpente” de Hélier Cisterne. Os filmes vão estrear nos cinemas King em Lisboa. João Nicolau e Hélier Cisterne apresentarão os seus filmes na sessão da noite de 6ª feira, 13 de Outubro.



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