Tiago Rodrigues…
…e 10 anos de Mundo Perfeito!
O espectáculo ‘Tristeza e alegria na vida das girafas’ regressou a Lisboa no dia 30 de Outubro e a Rua de Baixo aproveitou a ocasião da comemoração dos 10 anos da Mala Voadora e do Mundo Perfeito para conversar com o Tiago Rodrigues que é o director artístico do Mundo Perfeito e é também actor, produtor, encenador e dramaturgo.
Encontrámo-lo na Sala Principal minutos antes da reposição da peça e, se achávamos que íamos embarcar numa daquelas entrevistas que não queremos que acabe (nunca), embarcámos antes numa deliciosa conversa sem que ali existisse entrevistado ou entrevistador.
RDB – Uma década! Muito? Ou muito pouco?
Tiago – É um início, mas com tempo e trabalho suficientes para pensarmos no que queremos ser e para onde queremos ir. O que queríamos era uma festa que assinalasse estes dez anos da forma como aconteceu. Convidar os amigos, os espectadores, toda a gente, e proporcionar um encontro de pessoas para celebrar e para lembrarmos o porquê de fazermos isto que fazemos. Sábado foi mesmo incrível, foi como que uma espécie de concerto rock que se sentia no ar e que nos lembra que é isso que é importante: a ressonância imediata nas pessoas.
Já foram mais de 30 espectáculos pelo Mundo fora e fazer um balanço disso neste momento de celebração é um recuperar as memórias que nos estimula para o que vamos fazer amanhã.
RDB – Sorriste muito, no Sábado?
Tiago – Tive foi dificuldade em parar de sorrir no Domingo! Ao longo de dez horas andei com um sorriso preso na cara, literalmente com cara de parvo! (risos)
Acima de tudo foi muito esmagador em dois sentidos: primeiro pela generosidade dos artistas que nos vieram aqui presentear e, em segundo lugar, pela forma como o fizeram – oferecendo prendas ao público, que retribuiu com uma energia inesgotável. Não há palavras, nem há nada que se possa comparar a isto. Senti-me como se tivesse 10 anos, aquele momento no Natal em que desembrulhamos as prendas. Foi um encontro tão intenso, entre portugueses, brasileiros e até o Rui Horta, que já não pisava o palco há 10 anos, subiu ao palco com o seu cão e comoveu toda a gente.
E são tantas as batalhas constantes em obter mais condições, e corremos um risco tão grande de frustração, um risco tão grande de falhar, que a ambição de estarmos aqui durante cinco semanas é enorme. E face a este elevado risco de frustração é obrigatório lembrar os motivos pelos quais fazemos o que fazemos. Aquilo que nós fazemos é algo essencial, os artistas não servem para entreter, mas sim para celebrar e para ensinar a sociedade a celebrar. Por isso até num abrigo nuclear há motivo para fazermos uma festa!
RDB – E quando chegarem aos 20? O que podemos esperar?
Tiago – Inesperado. No 1º dia em que começámos a trabalhar brincámos muito com isso, em 2003, 2004, dizíamos uns aos outros ‘um dia vamos fazer 10 anos e vamos fazer uma festa daquelas! Um dia…!’. E, quando chegou, fizemos isso e muito mais, e também muito diferente do que tínhamos pensado. Agora, quando chegarmos aos 20? Poderá ser numa cabine telefónica com duas pessoas, ou enchemos um estádio de futebol, ou voltamos até esta casa emprestada, ou vamos para outros teatros, ocupamos todos os teatros em simultâneo, ou viajamos para outro país! Temos e queremos estar disponíveis para o imprevisto, para embarcar no inesperado. Como se costuma dizer: ‘Put your money where your mouth is!’.
RDB – Sábado, vimos-te a fazer algo diferente de teatro. Subiste ao palco e cantaste karaoke com a Isabel Abreu. Não resistimos a perguntar se também te podemos imaginar como cantor daqui a uns anos?
Tiago – Eu sempre gostei imenso de cantar mas tenho um problema crónico que é: se estiver a passar uma canção que eu conheço e da qual eu goste, eu não consigo não cantar. Por isso nunca mais as ouvi, essas músicas das quais gosto mesmo. Não ouço Pearl Jam há 15 anos, por aí! É que gosto tanto que sempre que o Eddie Vedder abre a boca eu vou e canto por cima. No Sábado resolvi cantar um bocadinho, mas também só porque a Isabel Abreu me obrigou. Então olha, cantei, dancei, fiz tudo o que me pediram!
Mas, respondendo à tua questão, não, acho que apesar de tudo o país está mau mas não merece um cantor tão mau como eu – ou pelo menos mais um tão mau.
RDB – E se te desafiarmos a encaixares-te em alguma das tantas coisas que fazes, desde a criação, à coordenação, à argumentação, em TV, em teatro… Qual destas facetas é a principal do Tiago?
Tiago – Actor. O resto vem daí. Eu escrevo como escrevo porque sou actor. Eu enceno como enceno porque sou actor. Eu produzo como produzo porque sou actor. Trabalhando como actor comecei a sentir a necessidade de fazer também outras coisas para poder, como actor, fazer o que me apetecia. Para não ser um actor que tem de estar sempre ao serviço dos outros, mas poder ser um actor que toma decisões e que é livre de fazer o que lhe apetece.
Na verdade dou por mim a dizer cada vez mais isto, o ‘fazer o que me apetece’. Porque é um luxo tão grande, não é? Mas ao mesmo tempo também é um direito, embora nem sempre seja possível. Se eu posso, na minha vida, fazer sempre o que me apetece? Não, a maior parte das vezes não posso. Mas todos os riscos que eu corri e todo o empenho que eu coloquei no meu trabalho foi sempre no sentido de conquistar oportunidades para fazer o que me apetece.
Actualmente dou por mim a passar mais tempo da minha vida a escrever, a dirigir, a organizar. Ou seja, nos bastidores, na plateia, a coordenar, a liderar. Mas a forma como o faço tem a ver com o facto de, na origem, ser actor. E o meu ponto de vista é sempre o ponto de vista do palco, não é um ponto de vista de fora. Eu crio peças a pensar como é que elas são vividas lá dentro e a confiar que, se forem feitas com qualidade e vividas intensamente, as pessoas vão estar a ver uma coisa que tem autenticidade, que tem interesse, e que lhes diz coisas. O trabalho em cinema também surge assim, com colaborações com realizadores em que eu participava como actor mas, como sou um actor que não se cala e dá muitas opiniões, no próximo filme já entrava como actor mas também já escrevia, e depois no outro já só escrevia porque era uma história minha. Mas parte sempre, tudo, de ser actor. Ser actor é falar com as pessoas, não é muito mais complicado do que isso. Não é fingir que se é outra pessoa, nem é esconder aquilo que realmente sou por detrás de uma construção qualquer.
E a escrita surge também para que os outros actores possam dizer o que querem dizer. Ou seja, da mesma forma que eu não quero estar ao serviço dos sonhos dos outros, não quero que eles estejam às minhas ordens. Quero poder inventar uma história e, com as opiniões deles, a fantasia deles e a imaginação deles enriquecer essa história. E portanto os textos, por exemplo o texto desta peça e de outras, são sempre uma coisa muito discutida com eles, e acaba por ser como um puzzle em que eu estou sempre a produzir peças novas até aquilo começar a encaixar na opinião deles. E às vezes é até muito sobre eles, ou seja, escrevo determinado tema para aquela actriz porque ela tem aquela forma de estar em palco, ou forneço material específico para ir de encontro à opinião ou a um tema que um actor acha desafiante representar.
RDB – Desse ponto de vista, é importante conheceres os actores antes? Para que possas adequar os teus textos a pessoas que sabes quem são, tanto a nível pessoal como a nível profissional?
Tiago – É indispensável para mim, e é indispensável aos dois níveis. Ou seja, é indispensável conhecer os actores profissionalmente e já ter acompanhado o trabalho deles, eventualmente até ter contactado profissionalmente com eles, e é indispensável para mim que haja uma espécie de clique pessoal, uma ligação na qual a personalidade daquela pessoa seja compatível comigo. Não que tenhamos de partilhar as mesmas opiniões, mas que consigamos ser felizes quando estamos juntos, e que sintamos que quando estamos juntos estamos a fazer o que nos apetece, que é estar juntos.
Claro que depois às vezes há graus de conhecimento, às vezes trabalha-se com actores em que alguns conhecemos muito mal e outros conhecemos muito bem mas, no geral, tem que haver um clique, uma razão para estarmos juntos que não seja só aquela pessoa ter talento. Há tanta gente talentosa no mundo! Nós temos é de estar com as pessoas onde reconhecemos talento mas com quem nos apetece estar!
RDB – Ainda sobre os teus textos, sobre o espectáculo que vai ser reposto no dia 7 de Novembro, ‘Se uma janela se abrisse’, o titulo do espectáculo vai beber inspiração a um verso do Alberto Caeiro. Porquê? Há algum tipo de fascínio pelo autor Fernando Pessoa?
Tiago – Há um jogo interessante. Por um lado é o poema, que significa qualquer coisa como ‘Se uma janela se abrisse mostrava o mundo, não tal como o imaginamos, mas tal como ele é’, ou seja, tem ali um jogo duplo de abrirmos uma janela mas o que encontramos não é o que desejávamos encontrar ou não é o que achávamos que íamos encontrar. E isso tem uma relação com o espectáculo. Por outro lado, outra coisa que tem relação com o espectáculo é essa ideia de que o Alberto Caeiro é uma versão pública da intimidade do Fernando Pessoa. E isto porque o espectáculo combina dois tipos de discurso: um é o telejornal real, que está a ser projectado como se fosse cinema mudo, sem som, e o outro é que no palco estão quatro actores e um músico a produzir todos os sons e os textos que deviam estar no vídeo. Só que eles não dizem o que está originalmente no vídeo. É muito parecido, mas ligeiramente diferente, e portanto conta as histórias e as reportagens de uma maneira na qual começa a penetrar uma espécie de poesia que não é normal no discurso do jornalismo televisivo. Temos, portanto, aquilo que nos é dito que é a verdade mais importante de um dia da forma mais cristalizada, quase fria, que é o discurso do jornalismo televisivo, do pivot – que neste caso é o João Adelino Faria – e temos a versão teatral, que é uma espécie de versão íntima desse jornalismo.
É um espectáculo que me dá um particular prazer repor em Lisboa, já que é o espectáculo mais antigo dos que vamos mostrar, e é também o primeiro que escrevi e dirigi. Foi a primeira peça que se pode dizer que é mesmo ‘um espectáculo do Tiago Rodrigues’ porque se combinaram as duas coisas, embora os actores que estão comigo em palco tenham sido essenciais para descobrir como é que aquela máquina funcionava, a máquina da dobragem. E tem uma coisa muito interessante que é a participação especial do João Faria que, mais do que pivot, filmou um fragmento no qual esteve 40 minutos em silêncio em frente as câmaras do telejornal, só para a peça. Isto porque a segunda parte do espectáculo é feito do dobramento dos pensamentos do próprio pivot do telejornal. E então aí entramos mesmo num discurso íntimo dele e da vida dele, não da vida do João Adelino Faria, mas da vida de um pivot imaginário.
E esse espectáculo dá-me particular prazer por isso, porque foi o início de uma caminhada que se pode contar com estes quatro espectáculos que vamos apresentar aqui: ‘Se uma janela se abrisse’, depois a ‘Tristeza e alegria na vida das girafas’, depois o ‘Três dedos abaixo do joelho’ com a Isabel Abreu e Gonçalo Waddington, que é talvez o espectáculo que teve mais visibilidade, porque recebeu o Globo de Ouro e recebeu o prémio SPA para Melhor Espectáculo de Teatro de 2012 e, agora, o ‘By Heart’, que é a continuação deste percurso. Em comum, estes quatro espectáculos têm essa característica de estarem sempre a misturar a realidade com a ficção, e o de estarem sempre a misturar o discurso público, o discurso oficial, com o discurso que é o teatral, que é mais poético, mais lírico, mais sensual.
O ‘Se uma janela se abrisse’ foi quando descobrimos que havia aqui um mundo por explorar, e só o vamos apresentar uma noite, no dia 7, e vai ser assim como que um cometazinho que vai passar. E é interessante porque aquilo é um telejornal de 2010 e, se na altura era uma história que as pessoas reconheciam por ter acontecido há meses, agora aquilo aconteceu há três anos! O país mudou bastante e vai ser muito curioso ver como é que um público português, de Lisboa, vai agora lidar com aquilo que vai parecer muito mais uma ficção. Também tem sido muito giro ver como é que no estrangeiro o público reage quando aparece, por exemplo, o Alberto João Jardim. Turcos, italianos, franceses, todos riem! Mesmo não sabendo quem é!
RDB – E nesta nova peça, o solo ‘By Heart’, de que forma podemos esperar essa dicotomia entre o real e a ficção?
Tiago – Antes do ‘By Heart’, e depois do ‘Se uma janela se abrisse’, apresentámos ainda o ‘Três dedos abaixo do joelho’ onde a Isabel e o Gonçalo usam os relatórios da censura de teatro durante a ditadura como se fossem textos teatrais. Ou seja, tentam representar teatralmente textos que são ‘corta isto, corta aquilo, isto é proibido, esta palavra não deve ser dita’, e estão portanto a transformar os censores em dramaturgos. Uma espécie de vingança doce.
O ‘By Heart’, que é esse solo que vou estrear logo a seguir no dia 20, e que só vai estar 4 noites aqui no MM, é o ponto de partido da peça que eu ensino a dez pessoas do público. O cenário vão ser dez cadeiras e duas caixas com livros. Eu convido essas dez pessoas a virem para o palco, ensino-lhes um texto de cor, e só quando elas souberem o texto de cor é que o espectáculo acaba!
Pelo meio eu vou contando histórias de vários escritores e de vários poetas sobre a importância de saber textos de cor, misturadas com uma história real, a da minha avó. Ela sempre leu muito, apesar de ser uma mulher cozinheira, muito humilde, e só com a quarta classe. Quando começou a ficar cega, já com 93 anos, decidiu decorar um livro, para que quando ficasse cega o pudesse ler na cabeça dela. E então eu conto a história de eu ter que escolher o livro que ela vai decorar, ou seja, a minha missão! A história que eu conto é quando ela me deu a missão de escolher esse livro.
RDB – Podemos saber qual é o livro, e o porquê da escolha?
Tiago – Não. Eu não sou nada de guardar segredos de espectáculos, conto tudo, mas este é um segredo dentro do próprio espectáculo. O espectáculo caminha todo até ao momento em que finalmente o público, e as pessoas que estão no palco, descobrem qual foi o livro que eu escolhi.
No entanto sem revelar qual é o livro posso contar uma história que tem a ver com o ‘By Heart’ e que tem a ver com o porquê de estarem dez pessoas em palco. Uma história que eu conto na peça e que eu acho particularmente bonita: a história do poeta russo Osip Mandelstam que, a certa altura, viu os seus livros todos confiscados. Ele foi preso e não havia forma de alguém poder aceder aos seus poemas. Então, a mulher dele, Nadejda Mandelstam (Nadejda significa esperança em russo) começou a reunir 10 pessoas de cada vez na cozinha dela e ensinava-lhes um poema de cor. No dia seguinte, ensinava outro poema de cor a outras 10 pessoas, que eram pessoas amigas e às vezes desconhecidos. Ou seja, ao fim de 60 dias havia 600 pessoas que sabiam os poemas dele de cor. Ela chamava a isto uma forma de publicar. Já que ele era proibido, e já que não se podiam publicar os seus livros, ela publicava-os ensinando-os de cor.
Ou seja, a ideia é mesmo essa: quando dez pessoas souberem um poema de cor, esse poema está salvo, mesmo que os livros desapareçam.
RDB – É curioso, o Mundo Perfeito destaca-se pelo excelente trabalho que faz no sentido de apoiar artistas emergentes, e agora temos uma nova peça que, mais do que jovens talentos, coloca em palco o próprio público. Há alguma mensagem nesta forma de estar?
Tiago – Uma das coisas que nós tentamos fazer em todos os espectáculos é tentar estar efectivamente com o público que está na sala, com toda a simplicidade do mundo e sem que isso isso seja um acontecimento que assuste as pessoas. A fronteira entre o palco e a plateia é apenas uma fronteira imaginária, não há aqui uma parte da parede que nos divida. No fundo, o teatro são muitos desconhecidos juntos numa sala a olhar na mesma direcção. As pessoas que estão no palco sabem que estão a ser observadas, e que estão ali desconhecidos, e depois teatro é o que acontecer a partir daqui. Não é a primeira vez que convidamos o público a vir para o palco, mas é a primeira vez que o fazemos como o centro do espectáculo. Desta vez, o espectáculo é isso.
Em última análise, é o mesmo que dizer que o que nós somos não é mais que o que as pessoas se lembram. Sobre estes 10 anos temos uns vídeos, uns textos, umas coisas que cabem num pequeno armazém. Mas tudo aquilo que nós produzimos é tão efémero que o único sítio onde está realmente é na memória das pessoas, tal como um texto aprendido de cor. E portanto isto é o reencontrarmo-nos um pouco com aquilo que é a nossa verdadeira condição, que é: ‘Se eu não vier para o palco fazer o espectáculo, tudo aquilo que eu sou enquanto artista não existe’. Ou seja, o único momento em que eu existo artisticamente é este momento em que estou aqui com as pessoas na sala e depois só continuo a existir na memória das pessoas. As únicas pessoas que realmente são o arquivo destes 10 anos do Mundo Perfeito são as pessoas que nos viram e que se lembram.
RDB – Olha, e uma curiosidade: Como é que foram feitos os ensaios dessa peça?
Tiago – É um monólogo meu, portanto é completamente caótico (risos). Sou eu, a qualquer hora do dia, às vezes às horas mais estranhas, a tentar arranjar momentos em que consigo estar sozinho, tirar umas notas e pensar um bocado no assunto. Mas eu gosto muito de ir para palco e haver um grande número de questões para o qual eu ainda não tenho resposta, e que tenho de encontrar no momento. Não que eu improvise texto, o texto está escrito, mas improviso muito a maneira de estar com esse texto em palco.
Já fiz algumas experiências com esta peça, e ela tem uma organização, mas ela foi feita essencialmente durante uma semana em que eu estive no Espaço do Tempo, que é um espaço de residências em Montemor-o-Novo (um antigo Convento) que tem sido um lugar muito importante para o Mundo Perfeito porque os inícios dos nossos processos costumam acontecer lá. Vamos todos para lá e estamos a viver num Convento durante algum tempo até que começam a surgir as primeiras ideias dos espectáculos. Aquilo que eu fiz foi trancar-me lá durante uma semana e estar ali fechado com a promessa de que no último dia mostrava o que tivesse conseguido fazer. E, depois desse último dia, ouvi as opiniões das pessoas, fiz um teste com público, com gente de Montemor e também com gente de Lisboa, sobretudo do Espaço Alkantara, que é um parceiro importante. Portanto convidámos os nossos cúmplices, as pessoas em quem confiamos e que nos conhecem para virem ver uma experiência. Tirámos as notas todas e agora estamos a retrabalhar (ou eu estou a retrabalhar) na peça para a ter pronta para dia 20. Ainda falta imenso até dia 20 portanto se calhar isto tudo que eu disse não vai acontecer! (risos)
RDB – Disseste que tens estado muito tempo em Montemor-o-Novo, mas o Mundo Perfeito nasceu num T2, na Amadora, não é? E surgiu literalmente numa casa! Queres falar-nos um bocadinho dessa história?
Tiago – Na altura eu estava trabalhar muito como actor fora de Portugal com uma companhia belga, os STAN, e estava também a escrever e a trabalhar numa série de coisas que não me permitiam estar em Portugal e apresentar cá o meu trabalho de uma forma regular. Então, na altura, resolvi fixar-me e fazer o contrário de emigrar. Resolvi ficar em Portugal, e foi então que eu e a Magda Bizarro, que é a directora de produção do Mundo Perfeito, cenógrafa, fotógrafa de cena, etecetera (ela faz muito mais até do que eu, eu é que falo mais!), resolvemos criar a companhia e o escritório era numa cozinha de um apartamento na Amadora, sim. E foi assim durante 7 anos, só há 3 anos é que passámos a ter um escritório no Espaço Alkantara, novamente numa casa emprestada.
Mas estas dificuldades que sentimos de quem estava a começar, rapidamente percebemos que eram mais que isso, eram também uma forma de funcionar. Quando começámos a ter oportunidades de ter mais condições, de ter um espaço maior, dissemos ‘Não não não, nós agora aprendemos a ser nómadas!’. Este ano, por exemplo, apresentámos o trabalho já em 8 países mas também porque escolhemos essa vocação. E foi sempre muito difícil carregar mais peso. Agora num espectáculo trabalhamos com uma equipa de vinte pessoas, mas no próximo podem ser só duas. Quisemos sempre essa possibilidade, meio guerrilheira de, em vez de termos um grande exército com muita artilharia, sermos só 4 ou 5 na selva com umas espingardinhas mas muito mais rápidos. Portanto isso tornou-se também muito a nossa forma de fazer espectáculos, muito ágil.
Se olharmos para este espaço é um espaço muito maleável, não é um espaço que tenha aqui uma grande construção de madeira, ou de metal. A forma como olhamos para o teatro também já não é essa. Interessa-nos muito mais, por exemplo, mostrar a construção do teatro. Não a escondemos com panos. Não queremos fingir que estamos noutro sítio. Quando o público entra pensa que isto tem o aspecto de? Teatro. Que é onde nós estamos!
Não precisamos que isto tenha o aspecto de uma rua lisboeta, apesar de a acção se passar nas ruas de Lisboa. As pessoas sabem que estão no Teatro portanto podem imaginar as ruas de Lisboa, vieram de lá agora! E se não as conhecessem, se fossem as ruas de Istambul, podiam imaginá-las exóticas, cada um à sua maneira. Isso é muito mais interessante. E depois o que nós podemos acrescentar a essa imaginação é que nos interessa. Então essa falta de meios, embora às vezes embora seja muito difícil e frustrante, tornou-se numa forma de agir. E se agora nos dessem o Euromilhões dizíamos ‘Obrigado, queremos, porque assim pagamos muito bem a toda a gente, mas as coisas que fazemos vão continuar a ter o mesmo aspecto’, porque descobrimos que aqui somos felizes. É neste teatro onde tem que haver um apelo à imaginação, onde não está aqui uma montanha a fingir que é uma montanha. Não, está um banco com um copo de água em cima e nós dizemos que aquilo é uma tempestade numa montanha. E a partir do momento em que dizemos, em que usamos a palavra e a imaginação, o público imagina. Queremos coisas que caibam num saco de plástico porque queremos ir ao máximo de sítios e conhecer o máximo de gente, viajar o mais possível, estar em muitas casas emprestadas. Foi como nos aconteceu este ano, em que estivemos um mês no Rio de Janeiro e criámos uma peça nova lá, e apresentámos várias peças antigas, o mesmo em São Paulo. E de repente chegámos lá e ao fim de uma semana estamos em casa, aquilo também é nosso, de alguma forma. Este ano, por exemplo, aconteceu-nos duas presenças em dois festivais super importantes, um em Paris e outro em Bruxelas, que foram assim momentos de afirmação internacional muito fortes e foi muito engraçado para nós a naturalidade com que aquilo tudo acontecia. O estar com outros artistas, grandes artistas da cena internacional que estavam ali, ao nosso lado, a observar o nosso trabalho, a discuti-lo.
Acho que o treino vem da dificuldade, de ter de andar tanto na selva só com uma mochilinha que a chuva já não incomoda. Queremos condições dignas mas não precisamos de luxos. Isto é quase uma ameaça também para o poder político, que é dizer: podem continuar a cortar à vontade, podem continuar a acumular a montanha de frustrações que às vezes acumulam com a falta de respeito que têm em relação à criação artística que nós, enquanto houver um vão de escadas, vamos continuar a trabalhar. Portanto aguentem-se!
RDB – E há algum convite final que queiras fazer aos leitores da Rua de Baixo para que não percam pelo menos um momento destas 5 semanas?
Tiago – Eu vou desafiar para dois momentos de que não falámos nesta entrevista, e que não são espectáculos, mas que são momentos pelos quais eu tenho um grande carinho. No Domingo dia 10 de Novembro eu, da parte do Mundo Perfeito, e o Jorge Andrade, da parte da Mala Voadora, vamos estar a conversar com dez pessoas que não são do meio do teatro, uns anónimos, outros mais conhecidos, que vão desde o psiquiatra Daniel Sampaio ao jornalista Carlos Vaz Marques, mas também a estudante do ensino secundário Stella Horta, ou o informático Pedro Delfim. Um grupo de dez pessoas vai fazer dez perguntas às duas companhias e a seguir vamos estar a conversar aqui no bar do Teatro Maria Matos. Ao público presente também é dada a hipótese de colocar perguntas, e acho que vai ser um encontro que vai ser muito especial para nós, e para todos.
No dia 17 de Novembro, outro Domingo, vamos lançar aqui, nesta sala, dois livros. Um de peças minhas e outro, um livro sobre o trabalho do Mundo Perfeito. Nesse dia vamos também mostrar em exclusivo um filme que ainda não está pronto, é um filme em construção do realizador Tiago Guedes, com Isabel Abreu e Gonçalo Waddington baseado na minha primeira peça de teatro enquanto dramaturgo, que se chama ‘Coro dos Amantes’. Ou seja, a primeira peça que eu escrevi e que é uma história sobre um casal a caminho das urgências de um hospital. É assim uma espécie de história vida ou morte contada a duas vozes.
E são estes dois momentos, que fogem daquilo que é a apresentação dos espectáculos mas que ao mesmo tempo mostram, tal como por exemplo a exposição fotográfica da Magda Bizarro, as ondas de choque do nosso trabalho, ou seja, a forma como os espectáculos que estamos aqui a apresentar começam a ter consequências e outras coisas vão surgindo, como satélites com vida própria, com luz própria. E isso é muito bonito de observar porque quase tudo são coisas feitas por outros a partir do nosso trabalho, ou coisas em que outros participam para falar do nosso trabalho.
E o meu convite para os leitores da Rua de Baixo é especificamente este: não importa qual é o momento destas próximas 5 semanas em que nos vêm visitar, ou se vêm a todos os momentos. Mas as pessoas têm de saber que, quando vierem, vão estar em contacto com teatro, cinema, literatura e espectáculos que estão preocupados com falar especificamente da vida delas e colocar questões especificamente à vida delas. Ou seja, se não fosse sobre quem vem cá, não tínhamos razão para abrir as portas. O que nós fazemos, tudo o que nós fazemos, é sobre quem vem cá. E portanto se não vierem não vão descobrir o que nós andamos a fazer sobre elas!
E foi assim, depois de uma hora de conversa intensa e cheia de uma paixão e entrega notáveis, que a Rua de Baixo foi assistir ao espectáculo ‘Tristeza e alegria na vida das girafas’, uma peça que esgotou o Teatro Maria Matos, esta casa emprestada onde até ao final do mês ainda há tanto para ver!
Fotografias de Catarina Sanches
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