“Amar, Beber e Cantar” de Alain Resnais
No Palco de Vida
Quando a comunidade cinéfila mundial ainda chora a morte de Alain Resnais, um dos mais emblemáticos mestres do cinema europeu, é-nos dada a oportunidade de ver “Amar, Beber e Cantar”, o último suspiro criativo do realizador de alguns dos maiores momentos da Sétima Arte como o foram “Hiroshima, Meu Amor”, “Muriel”, “O Ano Passado em Marienbad” ou “Smoking / No Smoking”.
Vencedor dos Prémio FIPRESCI e Alfred Bauer na mais recente edição do Festival de Berlim, “Amar, Beber e Cantar” simboliza o regresso de Resnais ao universo teatral, cerca de dois anos depois de “Vous n’avez Encore Rien Vu”, um filme cujos protagonistas eram atores em pleno ensaio de uma peça. Ainda que explorem um mesmo universo, as referidas películas distam entre si no seu conteúdo pois enquanto em “Vous n’avez Encore Rien Vu” o espetador assistia a um desfile globalmente profissional, “Amar, Beber e Cantar” eleva o amadorismo ao palco principal.
Livre adaptação cinematográfica da peça “Life of Riley” de Alan Ayckbourn, “Amar, Beber e Cantar”, é um filme que mistura drama com um apurado sentido de humor e retrata a relação de três casais cujo elo aglutinador é George Riley, um personagem omnipresente e omnipotente que nunca aparece em cena.
No centro da ação estão Colin (Hippolyte Girardot) e Kathryn (Sabine Azema), Tamara (Caroline Silhol) e Jack (Michel Vuillermoz) e ainda Monica (Sandrine Kiberlain) e Simeon (Andre Dussolier).
Os primeiros a entrar em cena são Colin e Kathryn, ambos convidados a integrar a peça dirigida por Peggy Parker, apesar de Kathryn acusar o seu marido de falta de empenho na atuação. No meio de um ensaio privado, Colin recebe uma chamada que vai mudar a vida do seu círculo de amigos. O diagnóstico dos exames de George Riley revelam que o mesmo está a braços com um cancro em fase terminal e tem apenas seis meses de vida.
Ainda que Colin peça segredo a Kathryn, a veia alcoviteira da mulher leva-a a espalhar a triste notícia de imediato. Tamara, amiga do casal e mulher de Jack, melhor amigo de Riley, é a primeira a saber a novidade. O desespero e sentido de injustiça apodera-se de todos mas depois de Jack abandonar a peça, surge a ideia de convidar Riley para o seu papel numa tentativa de dar algum alento aos últimos suspiros de vida do enfermo.
De uma forma ou de outra, todos querem passar o pouco tempo que resta com Riley e até Monica, ex-mulher de George, é convencida a voltar ao contacto do ex-companheiro numa tentativa de alegrar os seus derradeiros momentos apesar de ainda sentir-se bastante magoada. Quem não gosta da ideia é Simeon, atual amante de Monica, mas rende-se às evidências.
É notória a estreita ligação afetiva que todas as mulheres do grupo sentem em relação a George Riley e tal, acreditem, extravasa a simples compaixão. Resnais consegue contextualizar um enredo labiríntico servindo-se de um surrealismo aplicado a uma estrutura narrativa que serve-se de vários cenários artificiais e visualmente fruto de um devaneio onírico e teatral inspirado nas cortinas de um vulgar palco.
Em todas as cenas, as paisagens são pintadas e minimalistas, os sons ambientes são reais e os grandes planos dos atores remetem o espetador para momentos que nos fazem lembrar as obras arte pop de Roy Lichtenstein, quando o fundo se resume a centenas de linhas negras traçadas sobre um fundo branco. No lado oposto deste universo irreal estão as personagens de carne e osso assim como as imagens do countryside inglês que servem de estrada, literal, entre as habitações dos três casais ainda que essas também sejam vítimas de uma metamorfose entre realidade e um quadro pictórico. Para unir estes opostos artísticos está a música de Mark Snow que faz a ponte entre o burlesco e o bucólico.
Através de um jogo de diálogos que cruzam sentimentos, estados de espírito e almas diferentes, Resnais orquestra uma sucessão de acontecimentos cuja graça faz o espectador seguir meticulosamente uma tela que vai alternando entre situações mais expansivas e alguns grandes planos.
Apesar disso nunca se perde a formalidade dos personagens que são um típico exemplo da arte de Ayckbourn, cujo perfil situa-se na meia-idade entre tiques de classe-média e um extravasar burguês, nomeadamente nas pessoas de Jack e Tamara. Enquanto isso, a câmara de Resnais mostra uma miríade de sentimentos, desapontamentos, arrependimentos e quase-acontecimentos em relação aos três casais.
Nas entrelinhas ficamos também a saber que Jack e Tamara têm uma filha adolescente (Tilly) que serve de desculpa para não aflorar os verdadeiros problemas que existem entre o casal; como Kathryn e Colin enfrentem o tédio de uma relação também desgastada; e como Monica e Simeon tardam em alinhar agulhas afetivas sem esquecer fantasmas. E por falar em almas penadas, o episódio das últimas férias em Tenerife é a cereja no topo do bolo e vai fazer o copo transbordar.
Ainda que o todo do filme revela algumas oscilações entre o interessante e menos acutilante, destaque-se o magnifico trabalho dos atores, em especial Vuillermoz que envolve o “seu” Jack num brilhante dramatismo que mostra um homem em constante desafio face ao seu atribulado quotidiano e que tem na eminente morte do seu melhor amigo uma luta grandiosa.
O coloquialismo britânico dos personagens faz crescer o perfil burlesco de um “filme” que junta os universos de Resnais e Ayckbourn de forma eficaz e deliciosamente colorida. Os dias sucedem-se, sem a pretensão de qualquer exatidão e entre a primavera e o outono tudo pode acontecer, algo que contrasta, por exemplo, com a obsessão de tempo por parte de uma personagem como Colin que faz da sincronia entre relógios o seu barómetro existencial.
Sem ser uma obra-prima, “Amar, Beber e Cantar” é um exercício pertinente, bem-disposto e visualmente atrativo. Resnais serve-se da faceta neurótica e algo depressiva dos personagens e faz das suas fraquezas forças que afastam laivos de uma crescente ausência de sentido. Sabine Azema, ex-companheira de Resnais, e Michel Vuillermoz colocam os personagens de Kathryn e Jack no pódio de um filme que reclama a atenção do espetador de forma natural e não obsessiva, enquanto os casais falam dos seus descontentamentos, frustrações e crises cuja cura, culpa e redenção assume, a espaços, a figura de George Riley.
No fundo, Resnais reclama na tela por resquícios de uma morna humanidade ainda que refutando alguma audácia por parte de personagens que habitam um presente assente entre um pessimismo fruto de um passado longínquo e um otimismo em relação a um futuro indefinido. A nós, enquanto testemunhas, resta-nos percorrer cenários que misturam imaginação, vertigem, episódios surreais e um sentimento de celebração da vida ainda que assombrada pela presença da morte.
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