Poesia da Idade do Rock
«Cheguei a acreditar que era – o rock - um bom pano de fundo para mudar o mundo. Uma espécie de banda sonora da transformação.» Entrevista com João de Menezes-Ferreira, autor da antologia “Estro in Watts – poesia da idade do rock”
A viagem a bordo desta cápsula espacial começa no ano de 1955, no momento em que Carl Perkins calça uns sapatos de camurça azul e dá início à festa, só terminando quando, já em 1980, Rui Reininho canta isto em jeito de exorcismo: «Fumada! Frustrada! Fumada! Bruxa Oxigenada». Fala-se aqui de “Estro in Watts – poesia da idade do rock”, livro saído da pena de João de Menezes-Ferreira, uma antologia que reúne 563 letras do universo pop/rock entre 1955 e 1980 e que pode ser desfrutado como um manifesto de juventude no qual o autor trabalhou durante cerca de trinta anos.
Em finais de 1970, Menezes-Ferreira navegava nos mares hertzianos da RDP, responsável pelo transatlântico baptizado de «A Idade do Rock» – que teria a sua última emissão em 1980. Dos muitos textos escritos para o programa radiofónico, que se propunha desentrelaçar as ligações invisíveis entre a música e as palavras, nascia a ideia de elaborar uma antologia da poesia rock. Falhado o timing para que o livro saísse através da Rei Lagarto – a colecção mantida pela Assírio & Alvim -, bem como por terem surgido missões profissionais que incluíram o cargo de deputado ou a chefia da delegação que ajudou a escrevinhar o tratado de adesão à Comunidade Europeia, o projecto foi crescendo em lume muito brando até à sua edição, este ano, pela Documenta.
As letras presentes em “ESTRO IN WATTS”, com honrosas excepções – Leonard Cohen e Patti Smith são dois exemplos -, foram escolhidas tendo como critério o da irreverência utópica da juventude: não se aceitam letras escritas por gente com mais de 30 anos.
Para lá das letras em versão bilingue, o livro inclui notas biográficas de todos os artistas e bandas incluídos e algumas fotografias. O ideal será lê-lo da mesma forma que o livro foi escrito: lentamente e em silêncio, primeiro, depois procurando as canções no youtube – ou os discos numa boa loja de vinyl –, para que a palavra se una à música e se torne, como cantaria Sérgio Godinho, no elixir da eterna juventude.
Conversámos com João de Menezes-Ferreira a propósito da edição de “Estro in Watts”, numa troca de frases que deu para tudo: negar a vinda de Dylan como o messias do rock, esmiuçar o título apresentado em modo críptico ou perceber que o autor se vai mantendo a par das tendências sonoras actuais, elegendo os LCD Soundsystem como a banda mais importante da última década. Haja poesia.
De onde surgiu a ideia de chamar ao livro “Estro in Watts”?
Queria um título catchy, invulgar. Este nasceu um dia, de repente. O significado é logo explicado na introdução do livro: «Estro» é uma palavra clássica portuguesa, que o Camões usava, e significa inspiração poética; «Watts» é uma metáfora para electricidade; «In» em latim sinaliza um meio, um local ou um tempo. Resumindo, «inspiração poética passada a electricidade, nascida em tempos e locais muito particulares». Subentendido «de jovens».
Já não existe poesia no rock actual?
Claro que sim, eu é que deixei de estar no activo para a divulgar. E não há dúvida de que há hoje em dia menos «clássicos» de afirmação poética, porque já são menos precisos e porque as várias formas de dance music actual subalternizaram a poesia oral. Mas, por exemplo, o rap e as suas variantes de hip hop e de trip hop lançaram formas de poesia oral muito inovadoras.
Tem em James Dean um herói de infância/juventude? E/ou há outros?
Nunca cultivei heróis. James Dean era uma imagem de rebeldia jovem, e como morreu muito novo essa imagem cristalizou, deixando-nos a ilusão atraente de juventude eterna. Mas é uma ilusão.
Terá Dylan sido o messias do rock – ou da auto-sedução, como diria Allen Ginsberg?
O rock não precisa de messias. Dylan foi o primeiro grande lírico, e talvez seja o maior, visto agora em retrospectiva. Nunca se levou muito a sério e aldrabou sempre a sua biografia nas entrevistas, de propósito. Acho isso sedutor.
Na introdução afirma que terá sido o rock a ressuscitar a poesia oral, «perdida na noite dos tempos». Em que discos poderemos escutar a “Odisseia” ou a «Ilíada»?
Os estudiosos acham que esses monumentos literários gregos (nossos) podem ter sido cantados, e com acompanhamento musical. Como são muitos extensos, duvido que alguém se meta agora a reinventar. Mas quem comprar esta antologia tem como brinde dois textos que dizem bem como as aventuras da Odisseia andavam presentes. No mesmo ano (de 1967, um ano forte para a cultura jovem), dois poetas a milhares de quilómetros um do outro e certamente sem contactos entre si escreveram «Tales of brave Ulysses» e «Song to the siren». O primeiro é de Martin Sharp, um pintor caricaturista e designer gráfico australiano emigrado para a «swinging London», e foi escrito para o supergrupo CREAM a pedido de um desconhecido numa tasca, que se chamava Eric Clapton. O segundo, talvez um dos maiores poemas da história do rock, foi escrito numa praia de Los Angeles pelo poeta Larry Beckett para o seu amigo de escola e compositor/cantor extraordinário Tim Buckley.
Que memórias guarda do programa radiofónico “A Idade do Rock”?
Fantásticas. Pensava durante a semana e escrevia em cima da hora (o programa era «live in studio» com um apresentador). No Verão chegava a manuscrevê-lo na praia do Meco.
Mantém-se a par da música actual ou prefere revisitar o passado?
Continuo a ouvir muita música, mas não só rock. Estou atento e ainda vou a concertos, mas nunca de dinossauros (músicos recauchutados). Abri excepção para casos especiais, como por exemplo Neil Young ou Marianne Faithfull, e não me arrependi. Mas prefiro carne fresca: vi três vezes os LCD Soundsystem, os maiores da década que acabou.
Quando se percebe que a juventude acabou? E, por outro lado, não será esta também um estado de espírito?
Não se dá por isso, percebe-se só depois de acontecer. Na parte do espírito pode-se ir prolongando. Eu faço por isso.
Vê este livro como o seu legado pessoal à música, ao rock e à poesia?
Sem falsas humildades, acho que é um testemunho exigente e ambicioso (que deu muito gozo fazer), mas ainda assim não mais que um testemunho. Para os da minha geração e para os mais novos que se interessem (está primeiramente dedicado aos meus filhos).
João de Menezes Ferreira, 1993. Foto de João Tabarra
«…O rock foi o nosso marxismo», lê-se a certa altura. Chegou a acreditar que o rock – e o espírito que se viveu há algumas décadas – poderia mesmo mudar o mundo?
Cheguei a acreditar que era um bom pano de fundo para mudar o mundo. Uma espécie de banda sonora da transformação.
Depois deste projecto épico poderemos esperar por uma nova aventura?
Obrigado pelo épico. Deste tamanho, não certamente. Amigos da época disseram-me agora que o ESTRO (os poemas bilingues) devia ser a segunda parte, sendo a primeira parte os próprios textos para o programa radiofónico (com muita música) original. Fui reler alguns (sobretudo as séries). E não é que são ainda interessantes?!…
Uma edição Documenta
Foto de topo: João de Menezes-Ferreira em 1973.
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