“Un Certain Malaise” | Entrevista com Rodrigo Amado

“Un Certain Malaise” | Entrevista com Rodrigo Amado

Três décadas entre a música e a fotografia

Rodrigo Amado, saxofonista e fotógrafo, decidiu comemorar os seus 30 anos de carreira em grande estilo. De uma assentada, e há coisa de semanas, inaugurou a Exposição de Fotografia “Une Certain Malaise” no Museu de Electricidade, editou um livro com o mesmo nome e, cereja em cima do bolo, deu um concerto nessa noite – com os Lisbon Improvisation Players – e mais uns quantos nos dias seguintes.

A boa notícia é que a festa e os motivos para celebração não ficam por aqui. Rodrigo Amado está em estúdio a gravar um novo disco, viu “Burning Live at Jazz ao Centro” ser nomeado melhor do ano na lista da New York City Jazz Record (publicação associada ao site All About Jazz New York), o seu duo com Gabriel Ferrandini (bateria) tem uma tour confirmada para o Brasil – Rio de Janeiro (31 Janeiro), São Paulo (2 Fevereiro) e Santos (3 Fevereiro) – e, em Março, o Rodrigo Amado Motion Trio realiza algumas datas em Portugal, tendo como convidado o trompetista Peter Evans – concerto confirmado a 16 Março no Maria Matos. Quanto à exposição, poderá ser visitada até dia 10 de Fevereiro no Museu da Electricidade.

Falámos com Rodrigo Amado sobre a edição de “Une Certain Malaise”, livro que conta com fotografias suas, tiradas entre Moscovo, Varsóvia, Berlim e Copenhaga, a que se juntaram pequenos e inéditos textos de Gonçalo M. Tavares. Uma conversa a leste que viajou entre a música e a fotografia.

“Un Certain Malaise” | Entrevista com Rodrigo Amado

Seria possível resumir 30 anos de carreira com um parágrafo (ou pelo menos poderás tentar)?

30 Anos de entrega completa à aventura incrível que é a vida. O mais marcante, de tudo, foi descobrir a importância de se fazer aquilo que se gosta e é por isso que continuo a lutar todos os dias.

Moscovo, Varsóvia, Berlim e Copenhaga. O que une e separa estas quatro cidades?

Como todas as grandes cidades, estas têm personalidades muito fortes e totalmente diferentes. Para quem vem do Sul, aproxima-as o clima, uma certa dureza a que não estamos habituados. Moscovo é universal, imperial, misteriosa e difícil de apreender. Varsóvia é cosmopolita, muito dinâmica e virada para o futuro. Berlim é o novo centro da Europa, em transformação acelerada. É passado e futuro num mesmo lugar e, de todas estas, a cidade onde me imaginaria a viver. Copenhaga é, de todas, a mais ingénua, menos consistente.

De que forma deverão estes «lugares incómodos» – como lhes chama João Pinharanda no posfácio – mexer com o nosso corpo (e olhar)?

Para realmente mexerem com o nosso corpo é preciso estar lá. Viajar, não como turistas, mas como viajantes (uma espécie em extinção) é uma das formas mais poderosas de transformação pessoal. Quando era novo, atravessei a Europa por três vezes sozinho, em inter-rail, e descobri esse poder que emana do confronto com o novo, com o desconhecido. Penso que não há melhor forma de nos conhecermos a nós próprios. As minhas imagens destas cidades apenas poderão, na melhor das hipóteses, dar pistas ou inspirar pensamentos.

Herberto Hélder foi um fantasma sempre presente neste projecto? E foi-o apenas para Rodrigo Amado ou também para Gonçalo M. Tavares?

Fantasma não sei, talvez mais espírito invisível… o certo é que ainda hoje não o conheço, apesar de me sentir tão próximo da obra e da personalidade. Nos meus projectos gosto de me deixar guiar por ligações intuitivas e esta foi uma delas. Para mim foi extraordinário ver essa influência invisível e não racional estender-se à escrita do Gonçalo dando origem a este trabalho que nos ultrapassa a todos, ganhando vida própria. Essa é a grande magia das colaborações.

De onde surgiu a ideia de convidar Gonçalo M. Tavares para escrever os textos de “Un Certain Malaise”?

O nome do Gonçalo surgiu em conversas ainda anteriores ao projecto, devido a umas aulas que dava na Faculdade de Motricidade Humana e onde os seus alunos faziam a interpretação livre e criativa de imagens, escrevendo sobre elas de uma forma intensamente pessoal. Achei fascinante o processo. Mais tarde, em conversa com o Manuel Rosa, da Assírio (agora Documenta), chegámos à conclusão que seria interessante ter um texto no livro. De imediato pensei que não me interessava tanto um texto teórico ou de análise das imagens, como habitualmente era feito, mas sim um texto criativo, de carácter artístico, que se viesse somar às imagens. Naturalmente surgiu o nome do Gonçalo. Avisaram-me que seria difícil, que ele raramente respondia sequer aos e-mails, mas tentei. Ele respondeu-me quase de imediato e aceitou fazer o projecto.

«Não tenhas pressa. De cima conseguimos ver que não chegarás a tempo», termina desta forma a viagem de “Un Certain Malaise”. O mal do mundo é irreparável ou ainda há tempo de chegar a horas?

O mundo e a vida em geral são uma aventura fascinante e boa, e estamos sempre a tempo de o recuperar. O que acontece é que os desencontros políticos e económicos, a falta de cultura e educação, e o egoísmo do ser humano quase deitam tudo a perder. Mas eu sou um optimsta e acredito que há muitas pessoas a trabalhar por novos modelos de organização da sociedade e da economia. No final, deveremos ainda chegar a horas.

Música e fotografia, como se entrelaçam estes dois mundos na vida de Rodrigo Amado?

Música e fotografia equilibram-se de uma forma incrível no meu trabalho e no meu dia-a-dia. Desde que comecei a trabalhar mais intensamente com a fotografia, o meu trabalho na música ganhou um novo fôlego. Como se tivesse eliminado algumas energias menos positivas que estavam a travar o processo musical. Acho que isso tem a ver com o facto do universo da música se poder tornar algo obsessivo, claustrofóbico. A música é, no essencial, uma actividade de grupo. Na fotografia posso criar sozinho, posso captar mais intensamente a minha própria intuição e posso adoptar o ritmo e intensidade que o corpo e a cabeça me pedem. Imagino que para quem o faça de forma exclusiva também se possa tornar uma actividade um pouco solitária. E é aí que, para mim, entra a música, como uma explosão de comunicação que me faz vibrar de novo e sentir de novo a necessidade do meu próprio espaço.

O que segue nos próximos 30 anos?

Nos próximos 30 anos não sei, não sou de fazer grandes planos. Nos próximos tempos tenho novos discos – um álbum de estúdio do Motion Trio com o Jeb Bishop intitulado “The Flame Alphabet” (vai sair pela polaca Not Two), o primeiro do Wire Quartet (vai sair pela Clean Feed), e o terceiro registo dos Humanization Quartet, o projecto do Luís Lopes, a sair na Ayler Records. Estou já a trabalhar nesta última gravação com o Joe McPhee, Kent Kessler e Chris Corsano. No início do ano, estão já marcadas sessões de estúdio para “Hurricane” (com o DJ Ride e o Gabriel Ferrandini) e também para o Motion Trio com o convidado Peter Evans. No final de Janeiro tenho uma pequena tour no Brasil com o Gabriel (Rio de Janeiro e São Paulo) e uma exposição de fotografia em Curitiba. Também na fotografia estou já a preparar o meu segundo livro que vai ter o nome de “East Coasting or 86 Lost Classics”. É uma série de fotos tiradas na estrada durante as digressões dos Humanization Quartet nos Estados Unidos, e tem também uma lista de 86 discos que considero clássicos perdidos, sem nenhuma ligação às imagens. Acho incrível pensar que há pessoas que vão pegar no livro pelas imagens e outras que o vão procurar pela música, descobrindo depois a outra dimensão.



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