“Linha Vermelha”
Documentário sobre um documentário, “Linha Vermelha” lança uma pergunta central: onde termina a realidade e começa a encenação?
Quando, em “Linha Vermelha”, ouvimos o narrador em voz off a reflectir sobre o poder do cinema e das imagens, assalta-nos um pensamento: o de que, mais do que o poder das imagens, é o poder da câmara, com toda a sua carga mediática e simbólica, que salta à vista em no ensaio-documentário do realizador português José Filipe Costa sobre um outro documentário – “Torre Bela” (1977), de Thomas Harlan.
Antes de tudo, um insight necessário: “Torre Bela” é o nome do documentário (documentário?, já lá vamos) que Harlan, alemão, filmou entre Abril de 74 e o Inverno de 75, no qual registou a ocupação popular de uma herdade situada em Manique do Intendente (Ribatejo), pertença, até então, do Duque de Lafões (o nome parece caricatural, mas não é). Ocupação que se concretizou na criação de uma cooperativa orientada por princípios colectivistas de auto-gestão e propriedade comum dos meios de produção. Na sua irreverência, radicalismo e fervor revolucionário, a cooperativa da “Torre Bela” trouxe para a realidade todo um imaginário mítico afecto à esquerda anarca e libertária, daí não terem sido poucos os revolucionários além-fronteiras (franceses, italianos, americanos) a juntarem-se à causa, atraídos pelo que de vívido “Torre Bela” representou, muito para além dos livros e tratados políticos.
Thomas Harlan foi um deles que, fazendo-se acompanhar de uma equipa de filmagem, registou na sua câmara uma grande parte desses acontecimentos, desde momentos de cultivo da terra, auto-organização (refeitórios, creches, etc) ou discussões políticas até situações absolutamente icónicas, entre a gravidade e o burlesco, como as já célebres cenas da enxada (um camponês não entende o porquê da sua enxada ser “de todos” – que é “só” a questão filosófica e política da História) e da entrada do povo no sumptuoso palacete do Duque, na qual os camponeses, em ambiente gregário e de festa, exploram os quartos e as mobílias (roupas, toalhas, charutos, etc) dos patrões, tal qual Buñuel fez, mas em ficção, em “Viridiana” (1961). Cena – perdoem-nos a cumplicidade – de uma ternura imensa, onde o que se observa não é o “roubo”, antes a descoberta, pueril e feérica, de todo um “novo mundo”, até então trancado aos seus olhos.
O que é mais interessante em “Linha Vermelha” é a investigação profunda levada a cabo por José Filipe Costa, que desemboca sempre na mesma inquieta e perturbante interrogação: até que ponto estava Harlan a documentar a realidade e não a… dirigi-la? Ou, dito de outro modo: até que ponto “Torre Bela” não foi uma encenação?
A resposta não é de sentido único e são muitas as zonas de sombra. Certo é que tanto Harlan como os restantes elementos da equipa de filmagem (entrevistados em “Linha Vermelha”) e, bem assim, Wilson (“personagem” central do documentário e líder do movimento cooperativo, outro dos entrevistados) admitiram, entretanto, que a câmara não esteve apenas “lá”, pousada, a registar o que se passava (embora “Torre Bela” abra com uma legenda dizendo que nenhuma das cenas era encenada). Na verdade, algumas das cenas foram criadas por Harlan, especialmente momentos de grande intensidade dramática (é o caso do encontro, quase felliniano, de Wilson com um capitão do MFA, chegado de helicóptero), como forma de conferir tensão ao material cinematográfico (demasiado leve, segundo o produtor de “Torre Bela”, também entrevistado). Por outro lado, algumas das cenas eram repetidas, como se de um verdadeiro filme se tratasse (“outra vez, grita outra vez”) e o próprio Wilson foi escolhido para aquele “papel”.
Mas, voltando às primeiras linhas, mais do que o trabalho de encenação propriamente dito, o que nos deixa a pensar é o papel criador da câmara em si mesma. Na verdade, desde que o registo de imagens por vídeo foi introduzido, a câmara adquiriu uma enorme carga mediática, por ser associada à exposição pública, à invasão da privacidade, enfim, a uma forçosa transparência. Os tiques de “ter vergonha” ou de não querer “aparecer” por pudor, ou, ao invés, o ímpeto para o exibicionismo e para a teatralização do comportamento em frente a uma câmara não são de agora. E é nesse ponto que a dúvida surge: os camponeses que vemos em “Torre Bela” ter-se-iam comportado da mesma forma sem a presença da câmara? Teriam sido mais contidos? Ou menos? Wilson teria assumido o papel de líder que assumiu? A incursão pela casa dos patrões teria assumido os mesmos contornos? Resumindo: teve a câmara de Harlan, apenas pela sua presença física, um efeito interventivo e propulsor nos acontecimentos?
Não havendo conclusões definitivas a tirar, o que sobressai é uma intrincada intersecção entre realidade, arte e fantasia, em que as fronteiras entre elas se esbatem. Afinal, o que é que ali é espontâneo? O que é artifício? “Torre Bela”… aconteceu? Nesta linha, “Torre Bela”, pese embora a sua intenção de real (até pelo militantismo de Harlan), acaba por ter, involuntariamente, pontos de contacto com o chamado mockumentary, sub-género do documentário no qual factos ficcionados são trabalhados – documentados – como se da realidade se tratasse. Se quisermos ir mais fundo, podemos lembrar que ainda hoje subsiste o desacordo sobre se “La Sortie de l’usine Lumière à Lyon” (1895), dos irmãos Lumière, é um filme ou uma peça documental, argumentando os primeiros com o facto de os dois irmãos terem encenado a situação, repetindo-a várias vezes e criando um guarda-roupa próprio para os trabalhadores.
Ambicioso e metódico (montagem irrepreensível), “Linha Vermelha”, documentário sobre um documentário, é, também, arrojado do ponto de vista formal, não só pelos planos, digamos, arqueológicos que oferece (José Filipe Costa filma várias vezes, em fast forward e rewind, bobines e películas de material fílmico e sonoro), mas, igualmente, pelo experimentalismo – literalmente falando – do realizador: a certa altura, questionando-se sobre o poder da câmara, o realizador faz ele mesmo a experiência de filmar isoladamente um objecto, tentando provar o protagonismo de que este se reveste quando visado por aquela (enquadramento, iluminação, etc).
Trabalho de investigação sério e perscrutador, “Linha Vermelha” constitui mais um instrumento de olharmos para o nosso passado recente, que, afinal de contas, não vai assim há tanto tempo – só passaram 38 anos e já há quem em Manique do Intendente diga que é preciso uma nova “Torre Bela”. O cinema lá estará, atento e observador.
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