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Manuela Gonzaga | Entrevista

"O António (Variações) foi um aristocrata do povo. Um esteta. Uma estrela de verdade"

Em 1982, a escritora e historiadora Manuela Gonzaga, conheceu e entrevistou, por diversas vezes, António Variações. A sua paixão pela pessoa e artista foi determinante para lhe dedicar um livro. Chama-se António Variações – Entre Braga e Nova Iorque, foi recentemente alvo de uma reedição revista e aumentada e lançada com o selo da Bertrand Editora, e foi o ponto de partida para a entrevista que se segue. Uma conversa que revela mais um pouco da personalidade única de um homem e artista ímpar da história da cultura portuguesa.

Há 12 anos escreveu António Variações – Entre Braga e Nova Iorque, primeira «versão» deste livro que agora nos apresenta. O que a levou a voltar à vida e obra de António Variações?

Senti, acima de tudo, que fazia muito sentido relançar uma obra esgotada há pelo menos oito anos, uma vez que continuava a receber pedidos de leitores e, por vezes, de investigadores, a perguntarem-me onde podia adquirir esta biografia que já não conseguiam encontrar em lado nenhum. Além disso, fazia sentido também, dado que a Bertrand se mostrou sempre muito interessada nesta reedição, aproveitar para atualizar o livro, e acrescentar alguns dados novos, e proporcionar uma nova e aturada revisão do texto que, mantendo-se fiel à primeira edição (fez várias na época do lançamento), foi agora reorganizado na sua estrutura.

Além do homem e artista António Variações, o livro dá-nos também um retrato económico e social de Portugal na transição do Estado Novo para a democracia. O António foi, enquanto cantor, também o reflexo dessa mudança?

O António foi, sem dúvida, um dos rostos, talvez o mais emblemático, dessa mudança. Em palco, era alguém como nunca se tinha ainda visto. Pela forma como se apresentava, como se movia e dançava, pela mensagem poderosa das letras das suas canções, ainda hoje perfeitamente atuais.

o António é realmente alguém que ultrapassa a bitola da mediania e fica muitos furos acima da tabela

Mas quem era, na realidade, António Variações?

Nas suas próprias palavras, «António Variações: “[é] um provinciano, mais animal que racional, anarquista, pacifista, curioso, insatisfeito, que sente o direito a existir porque respeita a existência dos outros. [E que] gostava de pôr as pessoas a cantar, gostava de não ser só um espectador. E tem vontade de ficar na História, nem que seja na história de uma parede de casa de banho.”» Além disso, António era um sistema de vasos não comunicantes, perfeitamente definidos e delimitados, sem conflito. O António nasceu numa pequena aldeia minhota, e veio, por sua vontade, trabalhar para Lisboa aos 11 anos de idade, onde cresceu, estudando, trabalhando, aprendendo, e sonhando com o seu caminho – a música, e o palco. A família já não tem acesso a esse outro António que se constrói a si próprio, e que foi anos mais tarde cabeleireiro/barbeiro, e muito bom, com uma técnica de corte irrepreensível, a escola que trouxe da Holanda, onde viveu depois de ter cumprido o serviço militar. Acima de tudo, ele era um viajante, que, sem descurar as raízes, e o seu amor ao Portugal profundo, nunca deixou também de ser um cosmopolita, um esteta, um perfeccionista. Em tudo o que fazia, queria sempre fazer o melhor, sem descurar que a sua paixão, o objetivo, o foco da sua vida, sempre o teve na música. Em cômputo final, ele era maior que a soma de todas as suas partes.

No livro refere que conhecer o António «foi amor à primeira vista»…

Todas as pessoas que o conheceram, ou se cruzaram com ele, sentiram essa força e esse impacto. E todas as pessoas acabam por ter uma «estória» pessoal a contar sobre ele. Ou porque o viram passar na rua, ou porque o encontraram no Teatro D. Maria II, a ver um clássico, ou porque iam cortar o cabelo à barbearia dele, ou antes, ao Imaviz… ou simplesmente porque ficaram coladas ao pequeno ecrã quando ele irrompeu pela televisão. Mesmo as que não eram nascidas ou que eram muito pequenas à data da sua morte, relembram-no através da recordação de familiares ou da redescoberta do cantor através da música e da imagem que ele construiu. E sim, com ele, foi e é uma história de amor coletivo.

Ainda assim, muitos que se cruzaram no caminho de António Variações referem que o seu feitio mais inflexível face a determinados assuntos intimidava. Foi também essa complexidade que moldou um artista determinado e obcecado pela sua arte?

Todos nós somos complexos. Todos nós somos plurifacetados e multidimensionais. Mas o António é realmente alguém que até nisso ultrapassa a bitola da mediania e fica muitos furos acima da tabela. Ele já é um ser complexo e determinado pelo sonho que virá a concretizar plenamente numa carreira publica meteórica desde muito jovem. Desde a mais remota infância e todos os irmãos o confirmam ou confirmaram (alguns, com os quais ainda consegui falar, morreram, entretanto). Ele chegou a enfrentar o pai, aos 10 anos, até conseguir o que queria. Vir para Lisboa, naturalmente trabalhar, e deixar a terra, onde já tinha emprego, em Caldelas, relativamente perto de casa dos pais. Uma pessoa assim tão certa do que deseja alcançar é alguém muito focado e com uma personalidade muito forte. Alguém que não tem tempo a perder e que não admite que interfiram com o seu percurso.

António Variações

Os testemunhos citados no livro sobre a personalidade de António Variações descrevem-no também como alguém muito «reservado e educado», mas que se transformava enquanto artista. Havia dois mundos dentro de Variações?

Havia muitos mundos, dentro de Variações. Os familiares não conheciam os amigos. Os amigos não conheciam a família e mal se conheciam entre si, embora se cruzassem nos mesmos espaços públicos, porque eram ou viviam ou vinham de mundos diferentes. As pessoas com quem trabalhou, quer no mundos da moda/cabeleireiro/barbearia, quer da música, não conheciam os amigos, salvo algumas exceções. Muito pouca gente frequentou a sua casa. Ele não confundia as coisas. Era extremamente reservado, profundamente educado – não dizia palavrões, não cuspia para o chão, não se drogava, não fumava, «exigia» toalha de mesa de pano, até nas tasquinhas onde comia, e, em tudo, era um esteta. Mastigava de boca fechada, sabia usar os talheres, e cultivava esta e outras técnicas de civilidade que estão a perder-se infelizmente.

A imagem era algo que preocupava muito António Variações e o fazia apostar num estilo muito peculiar. Essa extravagância era o espelho da sua alma e excentricidade ou parte da criação de um personagem?

A imagem dele reflete a policromia do seu vasto mundo interior. E identifica ou configura o personagem que ele é. Mais uma vez, recorro às suas palavras, retiradas de várias entrevistas que deu: «Não gosto da ostentação do achincalhamento da figura clássica, da mesma maneira que exijo dos outros o respeito por mim. Nunca me vesti como o faço por provocação aos outros, mas como um ato de liberdade para comigo próprio, por prazer»; «É natural que eu faça uma certa encenação, mas sempre sonhei com a música e o espetáculo e por falta de outro fiz da rua o meu palco. Era uma fuga à frustração de não ser músico, e uma defesa contra a timidez que me fazia esconder atrás das portas quando era miúdo e havia visitas em casa»; «[A minha maneira de vestir] tem a ver com a minha liberdade. Visto-me assim, diferente e colorido, porque me sinto bem. No entanto, nunca me preocupei com a moda. Preocupo-me sim, com a estética.»

Numa das muitas entrevistas referidas no livro, António afirma: «dá-me ideia que nasci demasiado cedo». Portugal não estava preparado para um artista tão diferente, original e empenhado?

Estava, sim, e a prova é a forma como em três anos ele foi tão longe. E a perdurabilidade do seu legado, quer no imaginário popular, quer até em termos mais eruditos (tem vindo a ser alvo de estudos académicos), quer até na força que continuam a ter as suas palavras e a sua música que não perderam a atualidade. Agora, não podemos ignorar a onda de choque que representou a sua entrada na praça pública. Nem desvalorizar a imensa solidão do artista que fez uma longa travessia no deserto até chegar ao seu pública, e tocar Portugal inteiro. «Atravessei um longo túnel para chegar até este palco», disse o cantor. O seu êxito, surpreendente, fulminante, apanhou todos de surpresa. Menos ele. Desde o berço que se preparava para isso.

Mais de 30 anos depois da sua morte, ainda se fala da obra de António Variações como um fenómeno ímpar na história da cultura portuguesa. Podemos dizer que existe um período musical (e cultural) antes e depois de Variações?

Não é bem em termos musicais. É em tudo. Na música, até podemos encontrar referências, algumas tão explícitas como Amália, a quem presta sempre uma grande homenagem. Já as letras, são todo um legado único. Há ali uma profundidade, sabedoria, simplicidade e beleza, que começa a ser entendida. Temos sempre de tentar entendê-lo à luz do todo que ele representa e que é uma singularidade no panorama artístico português. Como eu costumo dizer, não há um «antes» nem um «depois» de António, porque ele é único e inimitável. Creio que será sempre muito difícil representá-lo, quer em Teatro quer em Cinema, embora sejam sempre de louvar as iniciativas concretizadas nesse sentido, já que ajudam a preservar a sua memória. Mas a forma como se movia, como falava, como ria, como calava, como mergulhava no seu mundo, como desfilava neste transitório palco que era o mundo onde se manifestou, ninguém poderá jamais imitar. O António foi um aristocrata do povo. Um esteta. Uma estrela de verdade. E isso não se alcança.

(…) mastigava de boca fechada, sabia usar os talheres, e cultivava esta e outras técnicas de civilidade que estão a perder-se

Até no dia em que faleceu, António foi especial; morreu no dia de Santo António, uma espécie de «beatificação» de um homem e artista cuja vida ainda parece envolta de alguma marginalidade. Acha que Portugal ainda não reconheceu devidamente a genialidade de Variações? Porquê?

Em 30 e tal anos estamos a falar de, pelo menos, duas gerações de pessoas portuguesas que o aplaudiram, amaram e choraram quando ele morreu, e que ainda hoje o cantam e recordam, e que não o deixaram «morrer». Portanto não se pode falar em «marginalização». O António fez cross over e chegou a todos os patamares ou estratos sociais de então e de agora. Acima de tudo, qualquer artista é, por definição, marginal. Para se ser verdadeiramente, genuinamente, artista, seja em que área for, a pessoa precisa de ir à procura de si própria e encontrar a sua própria voz. Contra tudo e contra todos, se preciso for. Toda a história da Arte – em qualquer dos seus domínios, da música à literatura, do cinema ao teatro, e por aí fora – é uma história de roturas e transgressões. Não vale a pena mitificar o que já é mítico. Um parêntesis: António não gostaria nada de ser ver «beatificado»! A fé do berço, ficou-lhe na infância.

 

 



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