Outfest
As artes exploratórias ao vivo e a cores no Barreiro.
Quando o ruído é música
Chama-se OutFest – Festival de Música Exploratória do Barreiro, mas afinal o que é música exploratória e música experimental? É música que desafia as concepções daquilo que convencionamos tomar como música normal e extrapola todos e quaisquer limites?
Rui Dâmaso, um dos directores e produtores do festival, descreve-a como “música que não apanha a auto-estrada, vai pela nacional para poder mudar de direcção quando quiser, para se desviar da rota, ou para poder parar à beira da estrada e ficar simplesmente por ali”. Basicamente, é música que “está disponível para se deixar surpreender por si própria e alterar as suas próprias coordenadas à medida que se constrói, seja ela improvisada ou não”.
Mas até que ponto uma música deixa de ser experimental e passa a ser apenas ruído? Vítor Lopes, o outro director e produtor do OutFest, considera que isso tem a ver com “o vibe e atitude que emanam da música”. Para ele, “há música exploratória a vir de todo o lado: é o Ornette Coleman em 1960, são os Pink Floyd em 68, os punks em finais de 70, o pessoal do house em 80 e tal. É música que, não sendo necessariamente contra a tradição, não se concentra meramente na sua perpetuação nem procura exactamente jogar sempre pelo seguro”. E de forma mais lírica, conclui como “toda a música que canta uma musa que nunca viu mas sabe que ela existe e acha beleza nisso”. Para Pedro Gomes, uma das metades da produtora Filho Único e um dos programadores do festival, essa “não é uma questão importante”, visto que esta “é música de procura, assente em criatividade, originalidade e progressão”. Daí o nome do festival e o ênfase na música exploratória em vez do experimental.
Talvez por isso Pedro Gomes não aceite a ideia de se falar de uma cena de música experimental em Portugal (ou qualquer outra cena). “Há pessoas a fazer música cá, mais e menos original, como há em quase todo o lado onde existe livre expressão”, realça. Prefere então apontar “muita música muito interessante num país da dimensão, e com as dificuldades de Portugal, que merece ser tratada com maior seriedade e ser alvo de uma divulgação competente, que continua a não ter”. É para contornar essa lacuna que trabalha a promotora Filho Único, que surge aqui associada ao OutFest como parceira na área musical, de uma forma “muito natural”, dada a ligação de amizade entre os intervenientes. Vítor Lopes realça ainda que “o OutFest não é um festival de ou para uma cena. Não somos a favor da inovação e da experimentação porque sim, e esses clichés todos”. Acha portanto que “há música linda e pouco ouvida que merece ser mais escutada e apreciada”. Por sua vez, Rui Dâmaso sublinha que “existem músicos em quantidade e em qualidade para poder dizer-se que há música experimental de grande nível a ser feita em Portugal”.
O OutFest acontece assim no Barreiro, de 15 a 29 de Maio, espalhado por vários locais da cidade, desde o terminal dos barcos à escola de jazz local. O ponto alto do festival são os dois dias do fim-de-semana de dia 22 e 23, o primeiro no protocolar Auditório Municial Augusto Cabrita e o segundo na sociedade Os Franceses, local fantástico de traço barroco e ligado a um passado com muita classe. O festival extende-se pelas artes exploraórias, mas dá especial ênfase à música. E ao cinema, que, segundo Vítor Lopes, é um “complemento da programação musical cada vez mais coerente e necessário”. Assim, vai ser possível ver uma série de documentários de gente importante no mundo da música – da Patti Smith aos Sonic Youth – , assim como uma “alta ideia do cineclube do Barreiro e que é uma sala estilo cubo hermético onde vão passar curtas vencedoras do FIKE e filmes finlandeses ultra refundidos”. Para Rui Dâmaso, esta é também uma forma de “experimentar outras formas de conhecer e compreender melhor os processos de músicos e estruturas que estão intimamente ligadas à música de que gostamos. É óbvio que um filme como o “Derek Bailey playing for friends” se enquadra perfeitamente no carácter do festival e oferece pistas para aquilo que queremos mostrar”, que é “a vitalidade, história, diversidade e importância das franjas da música contemporânea”.
O mito da terra do comunismo e da água da torneira com um sabor estranho
Mas afinal de contas o que é que se passa no Barreiro?
Os mais atentos a estas andanças já se aperceberam que o Barreiro já não é só terra de comunismo e água da torneira com um sabor estranho. É também base de várias coisas interessantes do universo musical nacional: é a terra das outras festas (noites musicais patrocinadas pela associação cultural OutRa, a mesma responsável pelo OutFest), da Searching Records e da Hey! Pachuco Records, dos Act-Ups ou do Barreiro Rocks. Mas Vítor Lopes adverte-nos que “uma queixa recorrente por aqui é a de que culturalmente não se passa nada”. Já diz o ditado popular que a galinha da vizinha é melhor que a minha, mas talvez o problema seja que, “se por um lado podiam existir mais coisas e melhor divulgação, por outro, algumas pessoas estão à espera que lhes enfiem tudo pelos olhos e ouvidos dentro. É aquela ideia de que para haver vida cultural é preciso haver ópera, Xutos & Pontapés e circo todas as semanas, mesmo que não se vá ver. São as mesmas pessoas que, sem saber porquê, acham que isto tudo devia ser de borla também”, conclui.
Para Rui Dâmaso, o que se passa é “o mesmo que em Lisboa ou no Porto, mas à escala de uma pequena cidade, uma cidade periférica e pouco conotada com dinamismo cultural e intelectual”. Ou seja, “algumas pessoas que trabalham muito para fazer coisas e para fazer acontecer coisas, e já há alguns anos que o fazem. É óbvio que o facto de falarmos de uma cidade pequena também ajuda a que quem está de fora tenha a tendência a ver a coisa com uma dimensão um pouco romântica”. Vítor Lopes indica que essas pessoas que trabalham muito para fazer coisas são, “literalmente, meia dúzia”. E a elas acrescenta “um departamento da juventude do município, que não se acomoda e procura agitar o panorama e ouvir os putos e dar-lhes algumas condições para realizarem os seus projectos”. O que já é bem mais do que a maioria das nossas cidades, diga-se de passagem.
Loops, power electronics, space-rock, John Fahey e estragos a altas horas
Vítor Lopes considera que “a relevância de um músico se mede pela sua influência nos restantes”. Mas nestas coisas, o pedido para que a organização destaque alguns nomes do cartaz é tão incontornável quanto a pergunta da praxe às bandas quanto aos seus projectos para o futuro (uma redundância, uma vez que não há projectos para o passado). Começa Vítor Lopes com William Basinski, “génio génio génio (três vezes) em estreia estreia estreia. Só digo duas coisas: quem não conhece ponha-se a pau e procure ouvir e ler sobre ele agora”. Nós ajudamos: apesar de ter ganho maior notoriedade apenas em 2001, graças ao épico de quatro tomos “The disintegration loops”, William Basinski já anda na música desde os anos 70. No entanto, ausência do minimalismo de gente como Steve Reich e Brian Eno fizeram-no abandonar a música clássica, o clarinete e o saxofone, em detrimento dos loops, da música ambiente e dos gravadores de bobinas. Os Whitehouse, também em estreia nacional, são “uma instituição”, daquele tipo de bandas que “um dia dizem que um disco deles é power electronics e dez anos mais tarde isso é um género musical”. Vítor Lopes aconselha a que “tragam tampões”, porque eles vão “espremer ao máximo os 12 mil watts do sistema de som” com a sua electrónica levada ao extremo, o noise e o tal power electronics. Por fim, os Spectrum e, para os descrever, basta-nos citar “um gajo que percebe disso” (mas que nós não conhecemos) que, por sua vez, é citado por Vítor Lopes: “um recital de space rock da mais alta ordem, é, para quem não viu “Spaceman 3” na devida altura, a experiência mais próxima em 2009”. Está dito.
Para além destes nomes “históricos”, Rui Dâmaso acrescenta o de Ducktails, que é um dos nomes que “mais momentum tem gerado nos últimos meses”, com o seu psicadelismo electrónico de drones e muita nostalgia pop, e Cian Nugent, guitarrista exploratório irlandês e “ilustre herdeiro da escola Fahey”, descoberto por Jozsef van Wissem. Além disso, aponta “dois sinais de que a música mais fora em Portugal está bem e é altamente recomendável”, como os Mão Sem Dedos, setubalenses do freeform, e Robert Foster, pseudónimo de Carlos Nascimento, mais conhecido como Ghoak ou como a outra metade dos Osso. Além disso, há ainda a FRICS “a tocar pelas ruas do Barreiro, o Peter Bastien no meio do povo na estação dos barcos em Lisboa, Gala Drop a fazer estragos a altas horas ou os Loosers a devastar a torto e a direito”, conclui Vítor Lopes. Pedro Gomes é bem mais pragmático nesta questão e arruma-nos logo as contas: “tudo é bom e é por isso que estão a ser programados. Não programamos nada que não adoremos”.
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