“Radium Girls” de Cy.

Uma obra de arte a lápis de cor

Vivemos um período dourado no universo das novelas gráficas e quase todas as semanas chegam aos escaparates vários livros que prometem resgatar o leitor da realidade, transportando-o para espaços paralelos onde só as narrativas desenhadas têm lugar.

Radium Girls, de Cy. (Arte de Autor, 2025), pseudónimo da francesa Cyrielle Evrard, designer gráfica de formação e ilustradora por paixão, é um exemplo desses livros encantatórios e que tem ainda a mais-valia de ter como inspiração uma história verdadeira, traçando o retrato trágico de um grupo de jovens operárias nos Estados Unidos da América, mais concretamente em New Jersey, da década de 1920, que trabalhavam na pintura de mostradores de relógios com tinta luminescente à base de rádio.

No epicentro da narrativa está Edna Bolz, operária da United State Radium Corporation, que com as suas colegas Katherine, Mollie, Albina, Quinta, e muitas outras, estava na linha de montagem que assegurava o fornecimento de relógios para o exército norte-americano. Basicamente, tinham como função aplicar a tinta undark nos mostradores, uma substância muito preciosa e cara, a um ritmo exigente. Uma das técnicas mais seguidas para conseguir um trabalho de qualidade era humedecer os pincéis nos lábios, de forma a obter traços mais precisos, ato que demonstrava um profundo desconhecimento pelos riscos associados à exposição ao rádio. 

Apesar da exigência do trabalho, o ambiente era tão bom que ao final do dia as colegas assumiam a sua amizade, encontrando-se habitualmente para conviver noutros ambientes fora da fábrica. Por vezes, nessas alturas e por brincadeira, autodenominavam-se por “ghost girls” e pintavam as unhas, dentes e rostos para ofuscarem, literalmente, os outros no escuro, ignorando que o faziam com uma substância mortal.

Infeliz e gradualmente, muitas dessas mulheres começaram a sofrer de anemia, fraturas ósseas e até de cancro. Quando confrontaram a empresa com essa situação, os responsáveis negaram qualquer responsabilidade, fazendo com que as trabalhadoras iniciassem uma batalha legal que resultaria em mudanças significativas na legislação laboral no país do Tio Sam.

Cy. aborda este drama com uma notável sensibilidade, onde, através da combinação de oito tonalidades de lápis de cor, destaca a amizade e a solidariedade entre as mulheres enquanto batalham por justiça. E como a cor é algo omnipresente em todo este livro, o destaque vai para a escolha de uma paleta restrita com predominância dos tons verde e violeta que evocam a atmosfera da época e simbolizam a presença do rádio.

Ainda a propósito da escolha e aplicação das cores, segundo a entrevista da autora registada nas últimas páginas do livro, um dos bónus desta maravilhosa e cuidada edição de capa dura (o outro é uma dupla página com esboços), algumas cenas apresentam atmosferas muito próprias, destacando, por exemplo, um episódio passado na praia (páginas 64 a 66) onde «o verde torna-se muito importante quando lutam na água». Outra das assinaturas da autora é a suave passagem da maioria dos momentos em que as pranchas são compostas pelas habituais vinhetas quadradas ou retangulares para páginas preenchidas por um único desenho ou ação, em modo “quadro”.   

Esse exercício criativo, assumido por Cy. como «baseado na intuição», assim como muitos outros ao longo de todo o livro, tornam Radium Girls numa experiência que desperta os sentidos, sendo a sua abordagem artística envolvente, ainda que a narrativa, a espaços, possa pecar por deixar o leitor com vontade de saber mais sobre personagens e a própria história que tem uma espécie de moral associada ao pertinente e devido ativismo em prol dos direitos laborais e da saúde ocupacional que permanece hoje, talvez mais do que nunca, relevante.

Fazer tudo isso com recurso à arte da banda desenhada é um dos grandes méritos de Cy. e que lhe vale o nosso merecido aplauso, que se junta a vontade de conhecer mais episódios da sua obra e talento.