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Tripásia

Regressados a Portugal no início de Outubro, João V. e João R. percorreram um total de vinte e seis cidades no continente asiático. Foi uma viagem sem planos, cheia de imprevistos e peripécias que não lhes mudou a essência mas que lhes alimenta agora a vontade de conhecer o Mundo.

Chegámos ao “prédio da porta castanha” (como é conhecido na zona) perto das quatro da tarde. Era dia de manifestação e tinha sido difícil chegar àquela rua do Intendente sem fazer um caminho absurdamente longo. João V. mora no quarto andar, ao passo que João R. ocupa duas divisões num apartamento no segundo andar do mesmo prédio. A certa altura da conversa, perguntamos se o nome João é requisito fundamental para se morar ali (há três no quarto andar e dois no segundo) e rimos todos: afinal, o que é preciso é ter o espírito livre e gostar da vida em comunidade.

Foi exactamente este espírito que os levou ao continente asiático. A ideia acompanhava já João V. desde 2006, ano em que um dos seus amigos fez uma viagem semelhante. As circunstâncias ditaram que só anos mais tarde concretizasse esse desejo. Tinha decidido ir, mesmo não tendo a certeza de que teria companhia. Mas essa companhia acabou por chegar na forma de João R. que, entusiasmado pela ideia, acabou por dizer que sim quase na hora. Contrariamente a muitos grandes projectos, começaram pelo fim e compraram a primeira viagem os dois: a viagem de regresso desde Xangai, nove meses antes da partida. Esta escolha, pensavam eles, garantia que iriam avante com a sua ideia, era como pensar “Man, agora temos mesmo que ir!”. Ambos conseguiram organizar a sua agenda profissional de forma a terem cento e onze dias livres, o intervalo de tempo que tinham destinado para a viagem.

As famílias de ambos reagiram de forma diferente a esta ideia arrojada: os pais de João V. estavam já conformados com a ideia mas os avós não reagiram com tanta tranquilidade. Já a família de João R. achou que tudo não passava de uma brincadeira e só o passar do tempo e os preparativos fizeram com que a ideia tomasse forma. Nem mesmo o facto de estarem ambos na casa dos trinta (ou quase) impediu que ouvissem as recomendações da praxe e os avós de João V. comemoraram mesmo o seu regresso.

Ambos falam do papel da internet numa viagem destas, achando que tem um efeito simultaneamente apaziguador e perverso: se por um lado era importante ter acesso à internet para informar a família que estavam bem, por outro viam-se confrontados com as reacções à falta de notícias quando passavam alguns dias sem aceder ao blog e que funcionou como diário de bordo e ponto de contacto com o Mundo). Chegaram inclusivamente a ser entrevistados para a Antena 1 quando estavam em Pequim e João V. teve duas entrevistas de emprego durante este período: o Skype é, sem dúvida, uma ferramenta fabulosa.

Levaram uma mochila grande cada um e uma pequena para os objectos mais valiosos. Partiram equipados com um saco-cama (que consideraram a melhor escolha da bagagem), um cantil, alguns livros, poucas peças de roupa. Descobriram no final da viagem que tinham carregado coisas totalmente inúteis, como um fogão Campigaz ou alguns alhos. Quase nunca precisaram de cozinhar e, contrariando a maior parte das recomendações habituais, aventuraram-se também gastronomicamente, fazendo das suas refeições mais uma oportunidade de conhecerem os costumes locais. Consigo levaram apenas dois guias (um da China e outro do Vietname) e nenhum alojamento marcado – falou-se mesmo durante a nossa conversa dos viajantes que levam tudo marcado de antemão e acabam por nunca conhecer os sítios por onde passam.

A estratégia para conhecer as cidades ou os sítios que visitaram era simples: viajavam principalmente durante a noite, para aproveitar as viagens mais baratas e os tempos mortos. Chegavam ao destino normalmente pelas primeiras horas da manhã, o que lhes deixava uma margem de manobra para explorar o sítio sem as habituais multidões. Essencial era comprarem um mapa assim que chegavam para poderem estudar os potenciais locais de interesse e brevemente organizarem o primeiro dia.

Perdiam-se quase sempre nas primeiras noites, a caminho dos hostels onde ficavam, mas assim garantiam também que ficavam a conhecer um pouco mais. Passaram dez dias sem um tostão no bolso, depois de chegarem a uma ilha durante a viagem. No entanto, e durante a estadia, nunca lhes faltou nada: como dependiam do barco para o regresso, tudo lhes era fiado porque sabiam que teriam que saldar a dívida com a chegada do barco.

Foram ávidos observadores das gentes e dos costumes locais mas confessaram que não conheceram muita gente. Durante a viagem, foi mais fácil criar empatia com outros viajantes do que com a população local, que os olhava na maior parte dos casos apenas como uma fonte de rendimentos. Este oportunismo, garantem, não era ofensivo – apenas fazia parte da forma de vida de países que só há pouco se abriram ao turismo e às benesses (e vícios também) que daí advém. Contam um episódio que se passou na China: sentados calmamente num restaurante, viam entrar pessoas que acorriam ao local apenas para os ver e confirmar como eram exóticos. E habituaram-se rapidamente a tirar fotografias com os locais, que as queriam guardar de recordação. A maior pressão, contam, sentiu-se nos países que há mais tempos vivem do turismo, que há mais tempo estão abertos ao Mundo e onde todos os turistas são potenciais oportunidades de negócio.

Ulan Bator, a capital da Mongólia, foi talvez o sítio que mais os desiludiu. Habitada pela metade da população do país (a outra metade vive no campo), a capital não tinha grandes locais de interesse nem formas de organização interessantes. Tinham também planeado visitar o Tibete e o Nepal mas, visto que na China se comemoravam os noventa anos do Partido Comunista, todas as fronteiras estavam fechadas e o preço da viagem de avião acabava por não compensar. Ficou também por visitar o Reino do Butão, conhecido como o país mais feliz do Mundo mas onde existem quotas para o número de turistas permitidos. Confessaram que nunca tinham vontade de deixar o sítio onde estavam, o tempo parecia não chegar para descobrirem todos os segredos mas acabavam por ficar felizes assim que chegavam a um novo destino.

Nunca se sentiram verdadeiramente em perigo durante a viagem e, ironicamente, João R. foi (isso sim) assaltado em Lisboa antes de partirem. Parece que faz parte do espírito das gentes locais não arriscar actos ilegais (com os turistas), sendo que se apoderavam apenas do que parecia abandonado. Mas falam dos russos como um povo que corresponde um pouco ao estereótipo que os liga à Máfia, com muita naturalidade, como se essa fosse uma parte integrante da sua vida que não precisasse de ser escondida. O processo de obtenção de vistos correu sempre com normalidade, sendo que os conseguiam nas fronteiras dos países. João R. ficou apenas retido algumas horas em Hong Kong porque os sensores de temperatura do aeroporto detectaram algo anormal – afinal, ele estava a viajar com 39º de temperatura. Mas sentiram que muitas vezes estes processos estavam envolvidos numa certa aura misteriosa, em que todos os passos estavam já destinados a favorecerem família e amigos dos oficiais do país de destino.

O conjunto das fotografias e dos vídeos que trouxeram da viagem soma oitocentos gigabytes. Sendo João R. freelancer na área do vídeo, decidiu acumular material para a montagem de um documentário que ilustre esta viagem. Depois da viagem terminar, pensou que talvez fosse interessante ter partido com alguns patrocínios nesta área para montar esse hipotético filme mas ficou feliz por ter viajado sem essa obrigação, podendo concentrar-se naquilo que era importante: ver o Mundo. Hoje, ainda têm essas imagens e filmagens por organizar mas estão tranquilos porque o mais importante já passou e as memórias na verdade não precisam desse tipo de organização.

Ainda não planearam a próxima viagem mas admitem que esta não será a última. Estónia, Rússia, Mongólia, China, Laos, Vietname, Cambodja, Tailândia e Macau assistiram à passagem de mais dois turistas portugueses. Assim as circunstâncias o permitam, gostariam de embarcar numa aventura semelhante em destinos diferentes. Sabem que, mesmo que viajem um ano inteiro, a sua essência não muda e, apesar de ser um processo lento e causador de alguma estranheza, a vida regressa sempre ao normal.

Um bom lema de viagem seria a máxima “Tudo se resolve” e foi assim que os dois amigos se fizeram à estrada (e ao mar e ao ar). No final, só lamentámos uma coisa: não ter mais um par de tardes para os ouvir contar histórias. Até à próxima partida.

Fotografia de Mário Tavares



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