“Que viagem é que foi a tua, Irene?”
"Blind Date" juntou Olga Roriz, Irene Lima e Cláudia Varejão e foi apresentado nos dias 12 e 13 de Novembro no Teatro São Luís, inserido no Festival Temps d’Images. De 8 a 10 de Novembro, o público pôde assistir ao processo de levantamento do espectáculo.
“Blind Date”, ensaios públicos e espectáculo, proposta muito pouco usual na nossa programação cultural, adequou-se como uma luva à natureza experimental e transdisciplinar do Festival Temps d’ Images. Este encontro às cegas entre uma coreógrafa e bailarina, uma violoncelista e uma realizadora nasceu de uma ideia de Jorge Salavisa, que queria que o público pudesse assistir ao nascer de uma coreografia, ao processo de escolhas, e de diálogos, que uma criação implica. Esclareça-se já: esta é uma reportagem sobre o ensaio público do dia 9 de Novembro de 2010.
O espectáculo do processo
A necessidade que Jorge Salavisa sentiu de dar a conhecer os processos de criação de uma coreografia, faz parte de uma atitude – tão característica da arte contemporânea – de alargar os limites do espectáculo, enquanto experiência circunscrita a um determinado espaço e a um determinado tempo. Essa atitude, que tem estratégias muito diversas, procede muitas vezes de uma tendência para valorizar o processo de criação. É um campo muito vasto, inspirador do trabalho de mediação do espectáculo que já começa a estar instituído junto das principais estruturas de programação. E até de criação, como é o caso do Teatro O Bando.
O que diferiu este ensaio público, e não ensaio com público, de todas as muitas encenações do espectáculo do processo a que já pude assistir, é a de que aquilo que aconteceu fugiu em grande parte ao controlo tanto dos espectadores (o que é habitual), como dos criadores (o que já não é tão comum).
O dispositivo criado só aparentemente é que era simples: os criadores estavam simultaneamente no tempo da criação do espectáculo – eles estavam ali mas a projectar-se para um tempo futuro, o da apresentação do espectáculo – e no tempo dos espectadores que estavam a assistir a um ensaio (e que foram aliás chamados, ocasionalmente, a dar a sua opinião).
Isto para começar por sublinhar que esta exposição do intérprete em carne viva, por mais que se adapte aos códigos tão nossos contemporâneos da cultura de voyeurismo, do destapar o véu sobre o processo e da paixão pelo real, é um acto de uma enorme coragem de quem a ele se entrega, principalmente de Olga Roriz, que está em maior exposição. Ficamos a saber que tem vertigens, conhecemos algumas frases da sua gramática corporal, aspectos que um espectáculo enquanto objecto acabado, esconde.
O corpo em composição com o espaço
Entrámos para uma zona central onde estavam alguns pufs que podíamos deslocar para o lugar onde nos sentíssemos mais confortáveis, e que tanto dava para o palco como para uma das janelas do Jardim de Inverno. É aliás aqui, na janela, que Olga se irá centrar. Na altura ainda não sabemos nada do que é que é a proposta.
Começa a improvisar, num movimento corporal contínuo. Os gestos são mínimos, parece que há a procura de um momento em que a coreografia possa chegar à ausência de movimento. Por isso não precisa de muito espaço. O seu palco tem cerca de dois metros por um e ela ainda o reduz mais, encostando-se a um dos vértices da janela, fazendo jogos de composição com o vidro que, para o espectador, por causa da luz, funciona também como uma superfície espelhada. Tudo é suficientemente intenso para nos despertar a atenção, para nos ligar ao gesto que se desenrola à nossa frente. E por outro lado percebemos que nem Irene Lima (ao violoncelo), nem Cláudia Varejão (com a câmara de vídeo) sabem muito bem o que se vai passar a seguir.
Olga, Irene e Cláudia, a dança, a música e o vídeo
Este não saber bem o que se vai passar a seguir, é uma condição que afecta de forma diferente as três criadoras em diálogo. Percebe-se, é muito evidente, e isso torna-se um dos aspectos mais interessantes do que estamos a ver. Para a coreógrafa – que para nós antes de tudo é a bailarina que se expõe ali em processo de construção – essa instabilidade é uma condição estimulante. Para a violoncelista, é uma zona de algum incómodo. A realizadora, através do óculo da câmara, está numa posição mais confortável. Ela, e os seus colaboradores – o ensaio é filmado com três câmaras – coloca-se, naturalmente, na perspectiva do espectador. Assim quanto mais vivo for o diálogo e a tensão criativa, mais interessante poderá vir a ser o material vídeo a construir.
“- O que é que tocaste? Aquilo que me disseste? E acabaste no fim?”
O diálogo entre Irene Lima e Olga Roriz nem sempre é muito claro e acaba por centrar-se no espaço e no tempo. O espaço é vivido por Irene com alguma incomodidade. Dada a deslocação do espectáculo por várias zonas, nomeadamente o palco e a janela, Irene é colocada numa zona onde está de costas para uma parte do público, o que a faz sentir-se desconfortável. Chega mesmo a perguntar-nos o que nós, espectadores, achávamos, e só quando lhe dizemos que fica bem, que se ouve bem, é que ela se tranquiliza.
Já em relação ao tempo é Olga que parece ter dificuldade em ajustar-se. Logo na primeira improvisação pergunta com grande candura a Irene, “- Que viagem foi a tua, Irene?”. Hão-de várias vezes acertar que parte da música é que tocam, Irene há-de pedir para tocar sem interrupções, Olga irá questionar mais uma vez se aquilo que Irene tocou foi aquilo que tinha dito que ia tocar, e tudo isto para nós espectadores, mais do que a expressão de um desacordo, surge-nos como o privilégio de estarmos a assistir ao cruzamento de um tempo que nasce de uma movimento interior da bailarina em torno da sua corporalidade com o tempo-ritmo que lhe chega através de uma música tocada num violoncelo. Quando ensaiam a ligação entre a zona do palco e a janela, há um momento em que a música chegou ao fim. Olga desabafou para Irene:
“- Apetece-me tanto que a música continue. Mas não a música…aquelas coisas de que me falaste.”
Os lugares, espaços entre imagens
Todos os lugares escolhidos vincam a dicotomia interior e exterior e transportam a ideia de vertigem para a relação com o espaço. Para além do palco e da janela do Jardim de Inverno, os outros dois lugares de representação são um varandim interior e a grande janela de vidro da pequena sala que antecede o Jardim de Inverno. Aqui o cenário natural provoca imagens fabulosas, as vidraças, as sombras na parede, a escuridão de dentro contra a luz, Olga contra a vidraça, dançando, a imagem simultaneamente no ecrã LCD da câmara de vídeo.
Olga Roriz em cada cena que faz socorre-se sempre da imagem gravada para visionar o que fez. E conversa com Cláudia sobre o que está a acontecer. O vídeo não tendo uma grande intervenção directa no que está a acontecer, acaba por ser importante como ajuda para a coreógrafa. E institui a imagem como espectáculo. Diante do cenário natural da vidraça onde ocorrerá aquilo que presumimos ir ser a cena final, há-de confessar ao ver-se no pequenino ecrã :
“-É tão bonita a imagem, eu não posso é estragá-la”
O vestido de noiva como se fosse uma história
Só depois das primeiras improvisações junto da janela é que Olga Roriz interpretou uma pequena coreografia em torno do vestido de noiva e nós percebemos que este tinha uma presença dramatúrgica importante. O quadro final, junto da grande vidraça, traz-nos novamente o vestido através de uma simples frase:
“-Meu amor, apetecia-me vestir aquele vestido branco que te faz lembrar uma noiva”
É nos seus diálogos com Irene que percebemos melhor que Olga Roriz anda às voltas com uma determinada ideia dramatúrgica. Enquanto Irene sente a tendência para sublinhar com maior intensidade o final, Olga quer deixar os sentidos a flutuarem, apagando a ideia de conclusão que associamos ao fim de uma história.
“- E acabou, Irene?”
“Acabou”, diz Irene.
“-Não queria que o desfecho da música fosse o desfecho da história. Tem que me apanhar parada.”
Saí para a rua ao fim daquelas duas horas perguntando-me se iria ver o espectáculo. Tinha alguma curiosidade, claro que tinha, mas também sentia que me apetecia ficar só com esta imagem de um espectáculo a construir-se. E de isso ser um espectáculo. Foi uma ideia luminosa, a de Jorge Salavisa, que neste momento em que o Teatro São Luís se prepara para uma nova direcção artística que entrará em Janeiro, deixa com este tipo de propostas, mais claro o que foi o seu contributo.
Coreografia e Interpretação Olga Roriz | Filme Cláudia Varejão | Violoncelo Irene Lima | Produção SLTM / DuplaCena / Festival Temps d’Images
SÃO LUIZ Teatro Municipal | Jardim de Inverno | 8 a 10 NOV | 21h00 [ensaios públicos] | 12 e 13 NOV | 23h30 [espectáculos]
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