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Hábitos de Consumo

Através da repetição, cria-se um hit

Decidi resumir de forma mais eficaz alguns dos meus pontos de vistos menos relevados pelos leitores da Rua, talvez por tê-los apresentado de forma excessivamente massuda no passado. Vou contar-vos uma história sobre a sociedade em que vivemos e a forma como essa sociedade influência a forma como se consome música a diferentes níveis.

Alfred Adler emigrou para os Estados Unidos no rescaldo da primeira grande guerra. Era um reconhecido psicoterapeuta, membro da nata da elite austríaca, mas, em dissidência com o movimento psicanalítico Freudiano, fez malas e foi viver para outro continente, aceitando um posto como professor na Universidade de Medicina de Long Island.

Nesta altura o molde social pós industrial, em reestruturação e reequilíbrio – depois de tão conturbado período, como o desta guerra – exigia um novo paradigma. A estruturação de um novo modelo capaz de se adaptar a uma sociedade que se adivinhava de consumo. Foi através das ideias de Adler sobre este assunto, que a sociedade americana foi pensada, e depois dela, toda a sociedade ocidental.

Para que melhor se compreenda o contínuo que desembocou na história presente, e a sua importância para o tópico que normalmente se explora nesta coluna, recomendo o visionamento do imprescindível “Century of the Self”, uma série da BBC que procura elucidar alguns aspectos menos conhecidos da psico-sociologia – muito ao jeito do que John Kenneth Galbraith fez com a fantástica série “Age of Uncertainty”.

A importância deste evento para a actualidade relaciona-se com a invenção de um conceito fulcral para o mundo capitalista dos dias modernos o qual já referi no passado “manifacture of consent”, algo como “fabricação de vontade”. Basicamente, um conceito que serve de motor à máquina social capitalista em que um homem (ou mulher) tenta provocar noutro homem (ou mulher) a vontade de adquirir o produto que produziu. Isto através de uma série de joguetes essêncialmente relativos ao domínio e controlo sexual, ao poder, ao status, etc.

Esta ideia, apesar de tudo, demorou muito tempo a permear-se adentro das artes, mas eventualmente fê-lo. O corolário desse permear é emblemáticamente visível na estrutura sob a qual a rádio corporativista se organiza, como é o caso da Clear Channel. Milhares de rádios, países afora, obedientes à mesma playlist, escolhida com base em métodos de “screening” que avaliam a probabilidade de uma determinada música capturar a atenção dos ouvintes.

Em Portugal, essa verdade é bem mais evidente: o consumo de música moderna nas ondas FM é quase inexistente, quando não consideramos as poucas rádios que ainda se aguentam com um certo grau de independência. Este programa de gestão radiofónica, “através da repetição, cria-se um hit”, baseia-se numa premissa importante: a mente humana reage com repúdio a coisas que não domina e não conhece, na maioria dos casos, e assim, para impor uma nova canção ou estética, nada melhor que a repetição, que adormece quase hipnóticamente esse impulso até ao momento em que o repúdio se transforma em apreço.

O problema é quando a música a ser repetida vezes sem conta é má, ou pior ainda, é a mesma há trinta anos. E neste momento é aí que está o grande problema: criou-se a dependência do ouvinte do hábito social que o distingue a nível musical (desde há muito até o hoje em dia, a tendência mais central é o revivalismo 80’s – daí o sucesso de tão necrófilo projecto como a rádio M80), e o serviço realmente público das rádios públicas é comprometido pelo fulcral erro ontológico de as colocarem em modo de funcionamento sujeito a regras capitalistas. A insistência em música já amplamente conhecida, cuja paupérrima lírica e estafada melodia teimam em reclamar actualidade sem mérito, é , de resto, mais uma forma de manufactura de consentimento.

Assim, qualquer pessoa que não tenha um ímpeto inicial de procurar, descobrir e relacionar-se, de forma excitante e sempre refrescante com a arte, e em particular com a música, converte-se num zombie conservador, que não sabe apreciar senão aquilo que foi quase Pavlovianamente treinada a conhecer. Incapaz de se mover em territórios que não domina, incapaz de ter vontade própria e procurar o que gosta por si mesma, ou de pensar por instantes em realidades que não lhe tenham sido préviamente apresentadas.

Um verdadeiro autómato, este cidadão que consome a rádio revivalista, um perfeito candidato ao estereótipo de plebeu sem vontade pessoal, sujeito ao treino e hábito prévio… um cidadão incapaz de reclamar a sua individualidade, pois os seus hábitos descrevem um perfil pessoal de fraca ambição, de pobre capacidade de apreciação artística, e por aí, limitada capacidade para a compreensão mais transcendente realidade da experiência humana. Um falso conservador musical que não é mais do que uma pessoa emocionalmente incapaz de aceitar a novidade, uma figura ôca e infrutífera na sua capacidade para escrever capítulos importantes, um autómato egoísta que não quer conviver com mais do que com a realidade que conhece.

Um perfeito peão, para os arquitectos deste nosso capitalismo em declínio… e aqui convém lembrar, por duas ocasiões, as ideias do já mencionado pensador exímio canadiano John Kenneth Galbraith, primeiro sobre o capitalismo: “Under capitalism, man exploits man. Under communism, it’s just the opposite.”; e depois sobre o conservadorismo: “The modern conservative is engaged in one of man’s oldest exercises in moral philosophy; that is, the search for a superior moral justification for selfishness.”



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