Ode Marítima
Pessoa por João Garcia Miguel, em estreia na Casa d’Os Dias da Água.
a Santa Rita Pintor
Sózinho, no cais deserto, a esta manhã de verão,
Ólho pró lado da barra, ólho pró Indefinido,
Ólho e contenta-me vêr,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com êle, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque êle está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
“Ode Marítima” – excerto
Álvaro de Campos, Orpheu II, Julho de 1915
A Casa D’os Dias da Água recebe a partir do próximo dia 25 de Janeiro até dia 4 de Fevereiro, a peça “Ode Marítima”, adaptada do texto de Álvaro de Campos, a faceta “engenheira” do mestre Fernando Pessoa.
Tal como o próprio texto, “Ode Marítima” vai mais a fundo do que uma simples encenação, uma vez que não é um texto dramático no sentido em que não tem uma acção, um texto, nem personagens que sigam as regras do texto teatral. O objectivo aqui é deduzir regras de composição que representem as palavras, num primeiro momento, e o texto, num segundo momento. Ou seja, a própria “Ode Marítima” é um organismo vivo, uma personagem que funde simultaneamente a expressão e a interpretação.
Tal como em 1916, quando Fernando Pessoa escreveu “Ode Marítima” com claras preocupações estéticas. Mais do que um poema, este é um texto canónico que resulta da aplicação de regras de composição e que produz um sentido preciso, que vai além do sentido próprio das palavras, obedecendo a composições estrurais, pictóricas, de ritmo e de dinâmica.
Neste sentido, “Ode Marítima” (a peça) projecta-se numa construção cénica apoiada na interpretação de João Garcia Miguel, cujo trabalho inicia-se através da maceração das palavras, dos seus sons e respectivas articulações, e progride até o texto se revelar como um todo e uma entidade própria, que sobreviva independentemente.
Alguém disse que “Ode Marítima” se tivesse sido pintada, apenas o poderia ter sido feita por Santa Rita Pintor ou Amadeo de Souza Cardoso. E eu acrescento que se alguém se atrevesse a interpretá-la num palco, então esse alguém só poderia ser mesmo João Garcia Miguel.
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