Reverence Festival Valada 2014 | Reportagem
Durante dois dias as portas da percepção foram no Ribatejo
Por estes dias, as portas da percepção a que Aldoux Huxley se referia na sua obra estarão certamente na localidade de Valada, no coração do Ribatejo. E em plena era de branding musical existe um festival que atrai os seus espectadores apenas através da música, não dos passatempos, das diversões paralelas ou da publicidade. Além disso, não estamos a falar de música à qual somos constante e involuntariamente expostos, quer através da internet, quer através dos media em geral, e, se tal coisa ainda existisse, seria mesmo caso para dizer que o Reverence Valada é um festival de nichos. Mas os nichos já não existem, ou se existem já não são o que eram, porque, com a velocidade ultra-sónica da (des)informação, tudo se transversalizou. Isto significa que, no primeiro dia do festival (12 de Setembro), cujos cabeças de cartaz eram os Electric Wizard, não havia uma maioria de metaleiros mas antes uma amálgama de ouvintes de diversos géneros. Se a banda britânica foi em tempos reconhecida pelo seu Doom ensopado em trevas, nos últimos anos assistiu-se uma reconversão dos Electric Wizard a outros géneros igualmente pesados, facto que se traduziu numa desilusão para quem foi ao Reverence à espera de viajar no tempo até à era de “Dopethrone” ou “Come My Fanatics”. Já quem não tinha tais expectativas terá provavelmente saído mais satisfeito, ainda que, como género, o Doom tenha como característica uma repetição lenta e arrastada que convida ao abandono da sobriedade, sob pena de, para aqueles que não o aceitarem, se aborrecerem eventualmente.
Antes dos mestres do doom britânico subiram ao palco os escandinavos Graveyard com um rock psicadélico tingido de soul, ainda que em certos momentos pudesse parecer o contrário, que era uma banda perdida por terrenos de uma soul tingida de rock psicadélico. Se, a espaços, os suecos pequem por assumir demasiado as suas influências, não deixam ainda assim de exorcizar os seus demónios de forma competente, ainda que cada vez num tom mais suave.
Durante a tarde, de entre as várias bandas que actuaram, houve ainda tempo para assistir à prestação sónica dos portugueses Sunflare que se apresentaram com a liberdade e a descontracção de quem está a destilar rock na sua forma mais improvisada, mas com a afinação da orquestra mais coesa. Já os Sleepy Sun parecem cada vez ceder mais à sua sensibilidade pop, e menos aos devaneios de guitarras de outros tempos, o que poderá ganhar-lhes novos fãs, particularmente os que apreciam o formato canção na forma mais clássica.
A tendência para um revivalismo dos anos 90 parece acentuar-se cada vez mais, e tanto a presença das Wytches como dos Ringo Deathstar revelam a influência que essa década cada vez menos longínqua exerce nas bandas deste milénio. Tanto assim é que a reunião e actuação dos Swervedriver surgiu como se nada se tivesse passado nas últimas duas décadas, ainda que sem o brilho inerente a uma juventude há muito perdida.
Depois dos texanos White Hills, com a sua doçura psicadélica a embelezar a noite veraneante da planície da estremadura, foi a vez dos portugueses The Rising Sun Experience com a sua leitura própria do psicadelismo à luz do hardrock circa 1992, sempre competente e profissional.
Já no segundo dia, quem chegasse ao palco Rio sem um calendário poderia pensar que tinha sido transportado de volta a um qualquer bosque de boogie rock dos anos 70, ao deparar-se com os Asimov, que em determinadas alturas fizeram, inexplicavelmente ou não, sentir saudades do há muito partido Randy Rhodes. De seguida, enquanto Brutus & The Cannibals com o seu psychobilly epiléptico e frenético tocavam no palco Sabotage, subiam ao palco Rio os Bardo Pond com os seus estranhos devaneios pelo território ecléctico do rock experimental, bebendo directamente de várias fontes e eras diferentes. Às 20h, tocaram os A Place To Bury Strangers, oferecendo o que infelizmente é, cada vez mais, um raro vislumbre das estranhas do rock, ao estralhaçar sem misericórdia nem piedade uma guitarra em palco. Face a este gesto, a sua prestação assumiu um estatuto de semi-culto, pelo que era virtualmente impossível não serem apreciados até pelos espectadores mais desconfiados e reticentes.
Perto de uma hora depois subiram ao palco os Psychic TV do andrógino Genesis P-Orridge, também conhecido por ter pertencido aos Throbbing Gristtle. Se a sua prestação foi interessante, particularmente pelo modo como deixaram as músicas respirar e desenvolver, tudo isto empalidecia face à presença do Genesis no palco, com o ar de quem poderia ter sido concebido por numa noite de luxúria entre Lili Caneças e um Mickey Rourke de alturas de “O lutador”.
Finalmente, chegou a vez da banda mais aguardada do festival, os britânicos Hawkwind, que contam já com cerca de 5 décadas de carreira. E se, para sexagenários frequentadores habituais de psicotrópicos a sua actuação não ficou a dever nada às de outros sexagenários também eles frequentadores habituais de psicotrópicos, a verdade é que a banda nunca mais foi a mesma desde a saída de Lemmy há coisa de 40 anos, e isso nota-se na falta de garra, particularmente em canções de “Doremi Fasol Latido” ou de “Hall of the mountain grill”. Foi especialmente notório na rendição demasiado civilizada de «You’d Better Believe It».
Depois de uma debandada algo acentuada, chegou a vez dos Mão Morta, que deram um concerto intenso e cativante tanto nos temas mais antigos como nos mais novos, ainda que estes, especialmente os do último disco, tentem demasiado ser canções trauteáveis, algo a que a banda baracarense nunca nos habituou, resultando muitas vezes isso em alguma frouxidão musical. Para quem ainda resistiu, houve tempo para uma excelente actuação dos texanos Black Angels, com uma parede de som tão densa que parecia que estávamos a viver dentro de «You’re Gonna Miss Me» dos 13th Floor Elevators, bem acompanhada com a voz incisiva e negra de Kyle Hunt. Psicadélica, harmoniosa e ao mesmo tempo cheia de groove foi provavelmente a melhor actuação de todo o festival, que terminaria ainda bem mais tarde, depois de actuações de 10000 Russos ou dos Moon Duo.
Se existisse um paraíso comum para hippies, metaleiros, punks, indies e hipsters, então esse éden chamar-se ia certamente Reverence e seria em Valada, no Ribatejo. Esperemos que para o ano haja mais.
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