acordaram a alice!
Exposição "Alice Jorge - Traços, Ecos e Revelações" no Museu do Neorealismo em Vila Franca de Xira, patente até 27 de outubro.
[que] as diversas maneiras de uma mulher ser artista em Portugal nos deem a certeza de que os caminhos são múltiplos e todos válidos quando autênticos.
Salette Tavares, Artistas portuguesas, Lisboa, SNBA, 1977
De 30 em 30 minutos há um comboio que parte de Lisboa (estações de Alcântara Terra, Campolide, Entrecampos ou Oriente) em direção a Vila Franca de Xira, e sem dúvida que apetece viajar regularmente no comboio que ali se põe em marcha.
A travessia de Lisboa a Vila Franca de Xira é uma paisagem extensamente povoada de ruínas e semi-ruínas industriais – Alhandra, Póvoa, Alverca, Santa Iria, entre outras localidades. A sua extensão reforça a ideia de nos encontrarmos em transição de paradigmas. Numa altura em que se sente tão necessário outras perspetivas sobre o passado, o presente e o futuro, é significativo ter-se a possibilidade de ver reunida uma parte da obra gráfica da artista portuguesa Alice Jorge (1924-2008). Alice Jorge – Traços, Ecos e Revelações com curadoria de Paula Monteiro e Helena Seita, é a primeira exposição individual organizada depois da sua morte em 2008. Reúne uma seleção de cerca de 30 obras da sua autoria, desenho, gravura, pintura e ilustração, do espólio recentemente doado por Júlio Pomar ao Museu do Neorealismo (daqui para a frente, MNR).
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Os significados de um corpo de obra, sobretudo no que diz respeito a artistas cujo percurso ainda está grandemente por problematizar dependem, invariavelmente, de quem os está a estudar. Este artigo é um contributo para a disseminação da obra de Alice Jorge e baseia-se num breve enquadramento de partes do seu percurso, dirigido sobretudo a quem o desconhece. É ainda uma oportunidade de dar visibilidade a trajetos mais à margem das narrativas que se conhecem sobre arte moderna e contemporânea em Portugal.
A exposição Alice Jorge – Traços, Ecos e Revelações patente no MNR e instalada numa das salas do seu piso térreo apresenta um conjunto de desenhos de figuras femininas, que no meu ver, exprimem fortemente o desejo de identificação do feminino. São desenhos que retratam um processo identitário da mulher, entre uma imagem ideológica e o seu reflexo real, que segundo Feijó e Pina Cabral, como qualquer outro processo identitário, se manterá na sua “irresolúvel diferença”[1]. Alice Jorge representa esse processo tal como o sentiu e viu: enigmático, poético, místico e a partir de certa altura intensamente abstrato. Representou-o inicialmente sob o fundo de desolação e miséria das camponesas e das crianças que as acompanham nas diversas atividades do seu quotidiano na década de 50 do século XX, e depois representou-o através de várias abordagens ao nú feminino, de 50 em diante[2].
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Esta exposição, surge do impulso gerado à volta da exposição A doce e ácida incisão: a gravura em contexto (1956-2004) realizada anteriormente, também patente neste museu[3], dedicada à gravura produzida pela Sociedade de Gravadores Portugueses (daqui em diante SCGP), da qual Alice Jorge foi uma das sócias fundadoras, e que incluía obra gráfica sua. A exposição Alice Jorge – Traços, Ecos e Revelações é dedicada ao percurso artístico desta artista, focando-se nas obras gráficas que produziu. Tem início com um grupo de desenhos que têm origem, “[n]a poesia do quotidiano, [n]as varinas, [n]as vendedeiras de flores, embora por detrás disso houvesse naturalmente o sofrimento do povo”, como refere a artista em entrevista a Rosita Gouveia em 1991[4].
A proximidade de Alice Jorge com o movimento artístico neorrealista, que ocorre em Portugal entre as décadas de 30 e 50 do século XX, deve-se mais aos conteúdos que trata do que à forma como o faz. Os seus desenhos traduzem influências do expressionismo alemão do início desse mesmo século, e a esta grande influência junta o registo do instante e do detalhe – as suas figuras aparecem quase sempre em ação. Alice Jorge escolhe representar as condições de vida de uma grande maioria da população feminina, reunindo todos os ingredientes para manifestar ao pormenor as idiossincrasias neorrealistas da época. Contudo, a suavidade enigmática e poética com que o faz é também o motivo pelo qual o historiador José Augusto-França, a considera apenas “vizinha” deste movimento, e não inteiramente sua representante[5].
Nesta época o trabalho de Alice Jorge surge mais da sua natureza contemplativa do que de uma clara oposição ao regime em que se vivia. Os seus desenhos parecem definir uma expressão de subtileza cívica. Isto é, as representações produzidas não escondem de onde vêm e o que vêem, pelo contrário, apresentam uma contradição entre a imagem que o Governo de António Oliveira Salazar criou – um país imperial e próspero – e o que o país continental é – “atrasado e pobre”[6].
Ao procurar indicadores do atraso e pobreza do país na década de 60 do século XX, no período das obras de Alice Jorge a que me refiro, fica-se a saber, por exemplo, que a esperança de vida da população portuguesa à nascença era de 60 anos para os homens e de 66 anos para as mulheres. Em 2011, cinco décadas depois, estes números alteraram-se profundamente: a esperança de vida cresce 16 anos tanto para os homens como para as mulheres[7].
A artista não atribui aos seus registos, o tom de denúncia da ditadura em que se vive em Portugal, que claramente se identifica, por exemplo nas obras de Manuel Ribeiro Pavia (1910-1957), Alves Redol (1911-1969) ou Cipriano Dourado (1921-1981), entre outros. No entanto, a sua obra, não deixou de provocar sérios atritos à autoridade do regime, ficando a artista impedida de lecionar em escolas públicas em 1955 e até 1974[8].
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O neorrealismo em Portugal denunciou energicamente, através da escrita e da imagem, o regime de opressão social e política que se vivia na primeira metade do século XX. É um movimento marcado pela literatura, que revela grandes afinidades com as inquietações sociais e económicas surgidas no início desse mesmo século no mundo ocidental[9]. Fora de Portugal, na Europa e no continente Americano, o seu período de forte influência é anterior, decorre entre as duas guerras mundiais, e é mais comumente designado por realismo social. Nas diferentes definições que encontrei para a caracterização destes estilos, coincidem o período em que decorrem, o tratamento de temas sociais e políticos, e a referência a inovadoras estratégicas estilísticas, mais afastadas das técnicas naturalistas.
O realismo social não é, contudo, a única tendência artística à época na Europa. Nesta altura também a arte abstrata, uma tendência não figurativa, assumia-se como forma de expressão preferencial entre artistas europeus, veja-se a obra dos artistas russos Wassily Kandinsky (1866-1944) e Kazimir Malevich (1879-1935) e do holandês Piet Mondrian (1872-1944), entre outros. As décadas entre 40 e 60 provocaram literalmente o estado da arte com muita experimentação, subversão e desafio às tradições. A obra da artista Louise Bourgeois (1911-2010) que não cabe em nenhum dos movimentos referidos, é um bom exemplo disso. Quando estas questões artísticas se sentem em Portugal nos anos 60, e mais afirmativamente após o 25 de Abril de 1974, vêm naturalmente com o ímpeto de mudança mas aparecem num domínio estilístico mais hibrido – de certo modo fundido mas nem por isso mais consensual. Uma profusão de tendências e influências artísticas talvez possa explicar porque encontramos no percurso de Alice Jorge, obras que, à época já remetem, em simultâneo, para os domínios do figurativo e abstrato.
Existe ainda no percurso de Alice Jorge uma série de episódios que revelam a descoberta e convívio com diversas experiências de vanguarda em Portugal e não só. Por um lado, enquanto estudante na Escola Portuense de Belas Artes[10] para onde foi por um ano, em 1948, para completar a disciplina de desenho arquitetónico, e onde encontra um ambiente propício a uma libertação de tradições e conservadorismos. O desenho tratado na Escola do Porto permitia aos estudantes dar maior relevo à “individualidade artística” e “desafia[r] progressivamente os limites impostos pela cópia e até pelo desenho natural”[11]. A este panorama juntava-se o ânimo dos estudantes para realizarem conferências e exposições que prolongavam estas questões para fora do circuito escolar. Organizaram-se eventos, entre as quais, por exemplo, as relevantes Exposições Independentes que tiveram o mérito de expor com regularidade arte abstrata. Para além do mais apresentavam também experiências plásticas que acentuavam a controvérsia entre arte figurativa e arte não figurativa. A primeira Exposição Independente, sob a liderança do artista Fernando Lanhas[12] aconteceu em 1943, seguiram-se pelo menos outras sete entre esta data e 1948 que contaram com artistas como o próprio Lanhas (1923-2012), Nadir Afonso (1920), Garizo Carmo (1927), Amândio Silva (1923), entre outros[13].
Por outro lado, uma parte relevante da formação artística de Alice Jorge foi feita fora do âmbito escolar, “porque cá vinham poucas exposições de fora, (…) a gente fez a nossa aprendizagem (…) nas livrarias e em casa de colegas, a ver livros…” como refere em entrevista a Rosita Gouveia. Há ainda uma viagem a Londres na década de 60 e as várias estadias em Paris entre as décadas de 60 e 70, duas cidades, comparativamente a Lisboa, marcadas por uma atividade cultural fora de série nesta altura.
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A partir da segunda metade do século XX a reprodução da imagem é parte da nova condição da obra de arte, o movimento da Pop art, em profunda afirmação no Reino Unido, confirma-o. Neste âmbito, Alice Jorge envolveu-se inteiramente no desenvolvimento da gravura moderna e contemporânea em Portugal e na possibilidade desta criar “múltiplos originais”. Na exposição Alice Jorge – Traços, Ecos e Revelações, podemos ver vários exemplos de gravuras em metal (processo de impressão que utiliza uma base de metal como matriz), xilogravuras (impressão utiliza uma base de madeira como matriz), litografias (impressão utiliza uma base de pedra como matriz), desenhos a tinta da china e ilustrações, todas elas técnicas que a artista domina, e que lhe potenciam um campo de execução e de expressão artística enorme.
Em 1956, Alice Jorge ajudou a fundar a SCGP, com o intuito de “criar a maior abrangência possível na produção, receção e comunhão da obra de arte, visando desse modo uma maior consciencialização do lugar social da arte e as suas possibilidades de educação crítica e humanista” como refere David Santos no seu texto “Buris e Pontas Secas. A gravura, o neorrealismo e a esperança do múltiplo”, escrito a propósito da exposição A doce e ácida incisão, a gravura em contexto 1956-2004. Para a artista a cooperativa nascia da necessidade de “poder levar às pessoas uma coisa original, que não obedecia à ‘escolinha’. Cada um fazia o que queria, não havia nenhuma limitação [relativamente] aos temas nem às técnicas”[14]. Uma das ideias motrizes que existia na cooperativa era a de que os artistas funcionavam como “embaixadores” do seu próprio produto. Artistas, entre outros, como Abel Manta (1888-1982), João Hogan (1914-1988), Maria Keil (1914-2012), Júlio Resende (1917-2011), Sá Nogueira (1921-2002), António Areal (1928-1978), Rogério Ribeiro (1930-2008), Bartolomeu Cid dos Santos (1931-2008), Paula Rego (1935), Jorge Martins (1940), Maria Beatriz (1940), Fernando Calhau (1948-2002) mas também José de Almada Negreiros[15], que produziu em 1963 duas gravuras em suporte acrílico com o acompanhamento de Alice Jorge. Enquanto artista e professora, a grande contribuição de Alice Jorge no domínio da gravura foi o da modernização das suas técnicas de produção e de impressão. Realizou com Maria Gabriel Técnicas de gravura artística, um manual publicado pela editora Livros Horizonte em 1986, que vai na sua 2ª edição. É interessante verificar como Mário Moura dá a conhecer o renovado protagonismo que o desenho, a ilustração e a gravura têm na arte contemporânea feita em Portugal hoje[16].
Acordaram a Alice! Mas a que se devem as manifestações de ruptura com a linguagem plástica e conteúdos instituídos que assistimos na obras de Alice Jorge presentes nesta exposição? Terá o conteúdo das experiências não figurativas da primeira metade do século XX influenciado a prática de Alice Jorge, ao ponto de a mesma as integrar no seu percurso de forma constante? Será que o estudo mais aprofundado da sua obra poderá ajudar a refletir sobre o significado da arte na altura e o significado da arte que se faz hoje, em Portugal?
Como a sua obra não se cinge apenas às disciplinas contempladas nesta exposição, incluindo também trabalhos em cerâmica, vidro e tapeçaria, aguardaremos por mais notícias de exposições suas no MNR.
Sobre a autora deste texto
Sofia Ponte é natural de Lisboa mas vive atualmente no Porto. Doutoranda na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, onde leciona, e investigadora do Instituto de História de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
O artigo segue o novo acordo ortográfico.
Notas
[1] Rui Graça Feijó e João Pina Cabral, “Do ultimato à morte de Amália: notas sobre a sociedade e identidade portuguesa no século XX”, p.63.
[2] Sobre o ponto de vista da criação artística a partir da perspetiva de artistas mulheres ver Filipa Lowndes Vicente A arte sem história. Mulheres e cultura artística do século XVI ao século XX, Lisboa: Athena, 2012.
[3] A exposição A doce e ácida incisão: a gravura em contexto (1956-2004), teve curadoria de David Santos e Delfim Sardo esteve patente no MNR entre 23 de março e 23 de junho 2013.
[4] Alice Jorge citada no catálogo da exposição Obra gravada de Alice Jorge, Alverca: Galeria Municipal, 1992, p. 2.
[5] José Augusto-França “A Terceira geração: figurativos e abstractos”, A Arte em Portugal no século XX. 1911-1961, Lisboa: Bertrand, 1991 p.407
[6] Rui Graça Feijó e João Pina Cabral, “Do ultimato à morte de Amália: notas sobre a sociedade e identidade portuguesa no século XX”, Século XX. Panorama da cultura portuguesa. 1 As ciências e as problemáticas sociais, ed. Fernando Pernes, Lisboa: Afrontamento, 2002, p. 63; e também Bernardo Pinto de Almeida “Os neo-realistas, os surrealistas e a evolução da arte portuguesa na década de 50”, A pintura portuguesa no século XX, Porto: Lello & Irmãos, 1993, p.89.
[7] Dados de 5 de setembro 2005 retirados da base de dados online Pordata, acesso a 9 de setembro de 2013.
[8] A sua atividade enquanto docente, no entanto, manteve-se e foi regular entre 1965 e 1981 no ensino não oficial. Para mais informações consultar o jornal da exposição Alice Jorge – Traços, Ecos e Revelações.
[9] O jornal da exposição permanente do Museu do Neorealismo Batalha pelo conteúdo–Movimento neo-realista português inaugurada em 2007, contém várias definições do movimento literário neorrealista português e reúne ainda um grupo exaustivo de escritores e artistas que se destacaram neste período, como Soeiro Pereira Gomes, Carlos Oliveira, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Bernardo Santareno, entre muitos outros.
[10] Só a partir de 1950 é que assume a designação de Escola de Belas Artes do Porto e em 1995, com a integração na Universidade do Porto é que passa a designar-se por Faculdade de Belas Artes.
[11] Laura Castro “O desenho e os seus autores pelos meados do século XX”, Cinco séculos de desenho na coleção de belas-artes, Porto: Universidade do Porto, 2011, p.167.
[12] Sofia Ponte “Fernando Lanhas”, 100 obras do CAM, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p.70.
[13] Bernardo Pinto de Almeida “Os neo-realistas, os surrealistas e a evolução da arte portuguesa na década de 50”, p.92.
[14] Alice Jorge citada por David Santos em “Buris e pontas-secas. A gravura, o neorrealismo e a esperança do múltiplo”, A Doce e Ácida incisão. A gravura em contexto (1956-2004), Lisboa: Culturgest, Museu do Neo-realismo, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 2013, p.167.
[15] O jornal da exposição Alice Jorge – Traços, Ecos e Revelações mostra uma fotografia de Alice Jorge com José Almada Negreiros na Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses. Uma reprodução das duas gravuras produzidas encontra-se no catálogo Gravura, Lisboa, Vila Franca de Xira: Culturgest, Câmara Municipal, Museu Neorealismo, 2013, p.315.
[16] Ver crónica de Mário Moura “A ilustração marginal do Porto?”, P3, 25 de setembro de 2011,
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