“Colheita” | Jim Crace

“Colheita” | Jim Crace

Os humildes herdarão o mundo

Com a promessa de abandonar de vez os romances, a possibilidade de Jim Crace ser laureado com o Man Booker Prize esfumaçou-se, dado que “Colheita (Editorial Presença, 2014) perdeu a edição de 2013 para “The Luminaries”, de Eleanor Catton. Fora a segunda vez, depois de “Quarantine”, que o inglês viu a sua obra ficar pela shortlist.

Obra de começos e não de um fim anunciado, “Colheita” move-se por uma série de eventos-chave que desequilibram a vida pacata de Walter Thirsk, narrador que possui uma voz que se embrenha na cabeça do leitor. Este não determina o tempo da história e deixa o espaço circunspecto a uma pequena localidade rural. Numa entrevista dada ao Independent, Crace afirmou que a última coisa que quer para “Colheita” é que seja esmiuçado por historiadores, dado que nunca pretendeu enveredar pelo caminho do romance histórico. Sem dúvida que se trata de uma Inglaterra feudal, distante de qualquer centro urbano, embora num primeiro contacto nos despistemos facilmente graças ao design de capa anacrónico. Porém, se isto significa que os personagens existem numa espécie de universo paralelo, a obra em si não deixa de ser rica em detalhes que a tornam tão viva quanto uma ficção histórica que se alicerce em pesquisa exaustiva.

Começando com os distúrbios causados por três forasteiros mal recebidos, sete dias são suficientes para que a isto se acresça uma disputa familiar entre os senhores Kent e Jordan, e ainda a reestruturação das terras para dar lugar à exploração pecuária e à produção de lã (levada a cabo pelo “Fabricante de Mapas” Mr. Quill, um subtil eco ao fenómeno histórico das “enclosures”). No centro disto, é justo dizer que Walter Thirsk é um campesino esclarecido. Apresenta-nos a possibilidade do homem rural ser um filósofo com mérito próprio, fruto do seu meio e rotina. Daí que a colheita carregue em si uma reflexão metafórica sobre um tempo cíclico, de regeneração.  Vê o seu mundo abalado por disputas acesas, discorrendo sobre temas abstractos que o afligem: o divino, a feitiçaria e o bruxedo, a perda de quem muito amou e consequente atracção por outros corpos. Há muito que os historiadores nos dizem que é errado julgarmos que a mentalidade dos nossos antepassados era movida apenas por rudeza e pouca sensibilidade. Mas o desumano também faz parte de “Colheita”, dado que a obra nunca se assume como uma descrição politicamente correcta da vida campesina.

Num plano abstracto, Walter Thirsk possui um talento que os indivíduos do seu tempo e estrato social nem se atreveriam a sonhar: escreve bem, uma prosa rica e bela. Um dos prazeres na leitura de “Colheita” é imaginar a voz de um número sem conta de indivíduos que, na sua época, nunca tiveram capacidade de se expressar, para que o seu pensamento chegasse até nós. Trata-se de um fantástico esforço de imaginação, dedução e intuição da parte de Jim Crace.



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