Festa do Cinema Francês 2013 – Reportagem
O panorama cultural de Lisboa foi invadido pelo glamour da pronúncia francesa!
Dia 10
A 14ª Festa do Cinema Francês arrancou no passado dia 10 com o filme de abertura Camille Redouble / A Segunda Vida de Camille, para o qual os bilhetes esgotaram quase uma semana antes da sua exibição. Mesmo estando esgotados, era grande a fila que se desenhava na bilheteira daquele que é o palco de excelência dos Festivais de Cinema em Lisboa, o Cinema São Jorge.
Noémie Lvovsky escreve, dirige e protagoniza o filme que abriu as hostes da Festa, e esteve presente para a apresentação do mesmo. O filme narra a história de Camille (Noémie Lvovsky) que, aos 40 anos, vê os seus 25 anos de casamento presos por um fio. Com a vida do avesso, Camille refugia-se em grandes doses de Whisky até ao dia em que este e uma série de outras situações lhe pregam uma rasteira. Um desmaio e um acordar diferente: De volta ao passado, Camille acorda na flor dos seus 15 anos de idade.
Uma viagem no tempo sem, no entanto, a colocar na idade física e mental de então. A fórmula utilizada não é criativa, já que a reconhecemos da obra assinada por Coppola em 1986 – Peggy Sue Got Married, mas aqui a história reveste-se de um charme muito característico. As restantes personagens do filme são de facto adolescentes, e vivem em plenos anos 80. Os cenários são agora marcados pela versatilidade, ousadia e sofisticação da época, e pelos visuais exagerados e extravagantes. Um delicioso cocktail de suspensórios, gravatas coloridas e padrões exuberantes.
Os caminhos que a personagem começa a percorrer não se afastam muito do óbvio, mas as cenas de humor que vão sendo alternadas com algumas sequências mais dramáticas evitam que o filme perca a graça. Da primeira à última cena o ritmo é intenso, e é justo elogiar a excelente representação dos anos 80, que não se encerra nos collants néon: a banda-sonora é igualmente de elogiar, e chega mesmo a apetecer levantarmo-nos da cadeira e dançar ao som da electrizante Walking On Sunshine, de Katrina And The Waves.
E é assim, por entre tons coloridos e pinceladas de pop, que se vai pintando diante dos olhos do público uma profunda reflexão do que é o passado, o destino, e os caminhos que nos trouxeram até aqui.
Será possível reconstruir a vida que escolhemos, resgatando o que se perdeu no passado? E, partindo da premissa que nos é de facto concedida essa opção, escolheríamos reconstruir o que se perdeu, ou mudar de rumo?
Na verdade, este não é um filme sobre o passado. É antes um excelente ensaio sobre o presente, sobre as nossas escolhas, e a capacidade de as aceitarmos.
No final do filme, conversámos um bocadinho com a realizadora.
(As perguntas em baixo são da autoria de vários intervenientes do público.)
Como surgiu a ideia do filme?
São perguntas e questões que me assolam desde a infância. O tempo muda, e sempre me questionei até que ponto é que nos pode mudar, ou se somos tipo um caroço imutável. Vivemos vários períodos na nossa vida que são muito intensos e interrogo-me se, se de repente fossemos crianças, algo mudaria.
Acha que as memórias são como tesouros? Que merecem ser gravadas, como cassetes?
Sim. Talvez seja uma resposta louca, mas tenho uma obsessão pela memória, e também pela perda dela.
E próximo filme, já existe? Falará sobre as mesmas temáticas?
Já começámos a escrever mais um argumento. Coloca perguntas semelhantes, mas é diferente.
Li na crítica que se tratava de uma comédia ligeira. Fiquei espantado, não concordo com essa categorização do filme.
Obrigada. Já fiz 6, dos quais este Camille Redouble, e já ouvi muitos críticos dizerem que faço comédias, mas eu não sinto isso. Não sei fazer direcção de actores, como por exemplo Hitchcock. Não sei quando devo fazer rir ou chorar.
Quando era adolescente, já pensava em escrever argumentos e em ser actriz?
Não, de todo. Não sabia o que era fazer um filme, ou ser realizadora. Quando tinha 15 anos sonhei ser actriz de teatro, e nessa altura tirei um curso. Mas só retomei aos 30 anos.
Quando volta a ver o filme sente que atingiu o objectivo ou estabelece sempre ligações entre os filmes?
Não sei dizer se há laços entre os meus filmes. Acho que sim, porque os filmes são sempre uma aproximação aos realizadores. São uma espécie de TAC dos realizadores. Por isso sim, dentro desse prisma os filmes têm ligações. No entanto quando termino um filme não o volto a ver, só imediatamente antes da exibição para ver se a mensagem principal está lá. Aliás, hoje só fiquei na sala 10 minutos após o filme começar, para verificar a qualidade do som e projecção.
Porque é que não volta a ver os seus filmes? Tem medo de ver os defeitos?
Talvez pela incapacidade de os acabar. Se os visse iria querer refazer cada plano uma e outra vez.
Acha que este filme é uma espécie de psicanálise? O filme acabou e parece que ainda estou nele!
(Noémie ri) Isso é porque eu ainda estou aqui, e por detrás de mim está uma enorme tela branca que o lembra do filme. Passou 1h50min e nem se apercebeu.
E, de facto, não nos apercebemos. Obrigada Noémie!
Dia 11
No dia 11 a fila para aceder à sala Manoel de Oliveira era enorme, e no ar pairava a grande expectativa do público em conhecer a nova comédia de Agnès Jaoui, muito conhecida em Portugal pelo imenso sucesso de Le goût des autres / O gosto dos outros.
Ela é também a madrinha desta 14ª edição da Festa do Cinema Francês, e esteve presente na estreia de Au bout du conte / E viveram felizes para sempre…?. Sem dúvida uma personagem incontornável do panorama actual da cultura francesa, a qual tivemos o prazer de conhecer neste dia.
O filme é, conforme o nome indica, um claro paralelismo com os contos de fadas que povoam a nossa imaginação. Uma história escrita a duas mãos com Jean-Pierre Bacri, na qual ambos são também protagonistas.
Conta-nos a história da princesa Laura (Agathe Bonitzer), uma jovem de 24 anos que mais não é do que a típica menina dos contos de fadas, que vive na esperança de encontrar o seu príncipe encantado. Como em todos estes contos, os príncipes e as princesas são obrigados ultrapassar determinadas barreiras para ficarem juntos e, nesta que é uma fábula dos tempos modernos, novos ingredientes são adicionados: Temos trios amorosos e galãs que, ao final de contas, podem bem ser principies encantados (ou será que não?).
As personagens não são, em nada, caricaturas ou personagens-tipo. São antes construídas com profundidade e com características muito próprias. Somos brindados com referências claras a histórias como a Cinderela ou o Capuchinho Vermelho, e todo o filme se desenha sobre uma estética contagiante e trabalhada ao detalhe. Uma produção recheada de grafismos de histórias infantis e de montagens propositadamente artificiais e exageradas.
Uma dicotomia inteligente e bem conseguida entre a realidade e a fantasia que, no entanto, oferece um desfecho um tanto ou quanto artificial. Sendo um filme bastante longo e denso, esperava-se-lhe um ponto final diferente, sem vírgulas ou pontas soltas. Não que o filme fique em aberto, mas a incerteza do futuro é tão grande quanto é a certeza do futuro de qualquer final dos filmes onde as personagens “viveram felizes para sempre”.
Embora não sendo a obra-prima da realizadora, esta é sem dúvida uma comédia que vale a pena ver, mais que não seja para desmistificarmos determinados tabus que temos em relação às histórias de amor (e ao amor, em si).
Uma vez mais, terminado o filme, o público teve direito a um encontro rápido com a realizadora, que subiu ao palco com a sua habitual boa-disposição.
(As perguntas em baixo são da autoria de vários intervenientes do público.)
O Jean-Pierre comporta-se da mesma maneira na vida real como se comporta nos filmes?
Não, de todo. Ele sabe bem qual o papel que desempenha, seja ele qual for, mas não me atrevo a explicar a personalidade forte dele. Aquela personalidade que faz com que toda a gente goste dele.
A ideia de uma morte pré-definida, de onde surgiu?
Aconteceu a Jean-Pierre, aos 8 anos. Ele não acreditava, mas ainda se lembra.
Porquê o vício de coçar e a referência a doenças psicossomáticas, e também a crença religiosa?
Porque conheço uma menina assim, de uma enorme sensibilidade, que sempre me emocionou muito. A crença religiosa é porque preciso de acreditar em algo. E também conheço alguém assim.
Este filme reflecte, de alguma forma, a sua infância?
Passa-se num universo muito parecido ao da minha infância, sim.
(Agnès emociona-se). É uma pergunta para a qual não tenho uma resposta concreta. Mas tem muito, sim. A princesa Laura tem muito a ver comigo, no sentido em que eu também esperei um príncipe encantado e também tive um amor único. Só espero ter sido menos mimada!
Acredita no destino?
Não especialmente. Podemos fazer a nossa própria vida.
Considera que a fidelidade é uma ideia nociva?
Não, eu acredito que é nocivo dizer que só existe uma forma de amar. Que é possível, é. Mas é muito raro. Existem muitas formas de amar.
A última frase do filme é uma espécie de manifesto?
Eu penso como a minha personagem no que diz respeito à fidelidade. Mas também acho que há pessoas que querem ser fiéis, e que ainda acreditam nisso. E isso é muito bom.
No entanto a ideia de viver uma vida inteira com a mesma pessoa, e ser capaz de viver em pleno em todos os sentidos, inclusivamente ao nível da sexualidade… nisso não acredito.
Tendo em conta o que descreveu anteriormente, como é que da realidade passou para a ficção?
Eu não sei inventar histórias! Temos de criar a história com algumas coisas que vêm da nossa realidade. E… há uma outra coisa que não posso dizer. (risos)
Quanto tempo demorou a escrever e a fazer este filme?
Quase um ano para escrever, ou talvez um pouco menos. Primeiro pensámos no tema, depois nas personagens, e só no fim é que vieram os diálogos.
Depois demorámos mais um ano para o fazer. Foram 4 meses de preparação, 2 meses para fazer e 6 meses de pós-produção.
Como o Jean-Pierre estava noutro filme, adiámos este filme 3 ou 4 anos.
Não há improvisos?
Não, nada. Tudo escrito.
Escrito e delineado está também o programa completo da 14ª Festa do Cinema Francês, que ficará em Lisboa até ao dia 20 de Outubro.
É de aproveitar até lá! Oh là là, oh se é!
Dia 18
A Rua de Baixo regressou à Festa do Cinema Francês no dia 18, para assistir a mais duas Antestreias: 2 Automnes 3 Hivers, de Sébastien Betbeder e Thérese Desqueyroux, de Claude Miller.
O primeiro foi também o filme que inaugurou a 14ª Festa do Cinema Francês em Coimbra, no passado dia 22. O nosso conselho para os públicos das cidades nas quais o filme ainda vai ser exibido é mesmo: vão ver! Pelo bem do vosso bom humor, e pela preservação do vosso lado mais lunático..
Um filme engenhoso, inteligente e original, que nos conta uma história intercalada por monólogos que as próprias personagens travam com a câmara, com o público. A história principal é a de Armand (Vincent Macaigne), um parisiense de 33 anos que logo nos minutos iniciais nos deixa perceber que estamos perante um desafio: ‘Algo tem de acontecer’. Este sentimento de descontentamento com o estado das coisas não lhe é único e pessoal, já que as restantes personagens (também elas com 30 e poucos anos) sofrem da mesma crise existencial.
Eles são amigos de longa data e ela, Amélie (Maud Wyler), é uma estranha com quem Armand se cruza durante uma corrida matinal no parque. É tanta ou nenhuma a importância deste encontro que o protagonista rapidamente surge a correr com um fato-de-treino novinho em folha: preto, e de marca! Começa aqui a ficar implícito que certas amizades deverão, talvez, tornar-se em romances, mas desenganemo-nos se achamos que esta será apenas mais uma história de amor.
Será antes uma história surpreendentemente expressiva que se irá desenhar por entre vários episódios que nos vão deixando ora ligeiramente chocados, ora extremamente comovidos.
Os diálogos e os pensamentos são extraordinariamente engraçados e servem de base para que cada personagem tenha momentos a solo incríveis. Ao realizador gaba-se-lhe a capacidade de captar na perfeição a linguagem de personagens que ora surgem como peças chave, ora como narradores de uma história que tem tanto de carga dramática como de humor inteligente.
São ainda bastantes as referências à cultura pop francesa, que se complementam com uma grande quantidade de floreios visuais que vão trazendo, a cada episódio do filme, uma roupagem muito peculiar. De facto o trabalho de edição do filme é um dos pontos mais essenciais desta obra.
Uma experiência cinematográfica que mais não é que uma enorme aula de criatividade à qual assistimos num ritmo frenético. É preciso ver para perceber.
O segundo filme, Thérese Desqueyroux, apresenta um registo totalmente diferente, não só pelo género mas também por ser o último filme da carreira de Claude Miller, que faleceu em Abril de 2012, a um mês da estreia do filme. Trata-se da segunda adaptação do romance de François Mauriac, a quem foi atribuído o Prémio Nobel da Literatura em 1952.
Thérese Desqueyroux passa-se numa França dos anos 20 e conta-nos a história de Thérese (Audrey Tautou), uma mulher que em nada se enquadrada com a sociedade retrógrada de então. O ambiente é rural, e pautam-se os pensamentos das restantes personagens por ideologias extremamente restritivas e limitativas.
A protagonista espelha emoção e vontade de viver apenas enquanto é criança, nos momentos que vemos serem partilhados com a sua melhor amiga, Anne (Anais Demoustier), que é também a irmã do homem com quem Thérese irá casar. O casamento com Bernard (Gilles Lellouche) não será mais do que a concretização de uma lógica machista na qual a união matrimonial existe para servir interesses económicos, e na qual se reduz o papel da mulher à reprodução de herdeiros.
Se no início desta série de acontecimentos Thèrese aparenta uma certa resignação, depressa lhe começamos a perceber uma crescente intolerância face ao padrão de vida imposto. Sufocada pelos valores familiares, começam a definhar-se-lhe os valores e torna-se difícil compreender a ambiguidade desta sua nova faceta. Não lhe vemos espelhado um desejo puro de liberdade, nem lhe conseguimos roubar a apatia do olhar.
Queimam-se os pinheiros, ferem-se as aparências. Thèrese torna-se numa personagem pesada e inicia-se um processo de degradação física e espiritual que nos confunde e nos faz questionar sobre onde começam e acabam as boas e as más atitudes. Uma teia dramática que tão depressa nos ajuda a compreender o rumo que tomam as personagens, como no momento seguinte desnorteia e nos torna incapazes de discernir o lado bom da história. Ao final de contas, quanto valem os nossos valores, quando confrontados com outros, os dos sistemas instituídos?
Para os apaixonados da eterna Amélie Poulain, este é um registo bastante diferente para a actriz Audrey Tautou. Mas ela é, também, a única personagem efectivamente relevante e arrebatadora em toda a história. Uma personagem densa que convida à reflexão sobre o perigo das opressões, das restrições e da proibição de pensamentos.
Fotografias de Catarina Sanches
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