PR#2 – Saramago

Saramago já não é comunista.

Publicado no início de Novembro, “As Intermitências da Morte” é o novo livro do Nobel Saramago. Uma comédia de um autor que, dizemos nós, meteu o marxismo na gaveta.

Não é preciso ser-se bruxo para adivinhar que as insistentes lérias sobre as ideias políticas de José Saramago (n. 1922) escondem uma absoluta mágoa dos seus obreiros: Saramago orgulha-se de ser comunista e os detractores preferiam que não fosse assim (por que o preferiam é lá com eles). Daí que, sobretudo desde o Nobel, em 1998, as críticas aos seus livros mascarem, quase sempre, por via da crítica ideológica, uma dor de corno cósmica – que, além de mesquinha, assenta em princípios errados.

Não se pede aos críticos que separem cirurgicamente o homem do escritor – como há dias, no Jornal de Letras, propunha o poeta Paulo José Miranda (vencedor do Prémio José Saramago há seis anos). Pede-se que leiam, além dos livros de Saramago, o que parece que não fazem, esse documento fundador do ideário que o escritor perfilha chamado “Manifesto do Partido Comunista”*. Leiam-no e reconheçam no escritor Saramago, no pós-Nobel, sobretudo, uma heterodoxia comunista.

A editora portuguesa de Saramago, a Caminho, adopta hoje aquilo a que Marx e Engels chamam “carácter cosmopolita” da produção e do consumo. “As obras intelectuais duma [nação] tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; e da multiplicidade das literaturas nacionais e locais nasce uma literatura universal”, dizem estes autores a propósito do mercado mundial que, segundo eles, a burguesia criou com vista a uma “exploração desavergonhada” dos povos.

À luz disto, recorde-se que o novo romance de Saramago, “As Intermitências da Morte”, editado no princípio de Novembro, foi apresentado numa cerimónia pomposa no Teatro Nacional de S. Carlos, em Lisboa, onde foram dadas a conhecer as versões portuguesa, espanhola, mexicana, argentina, colombiana, catalã, brasileira e italiana do livro. E recorde-se que o autor se desdobrou em entrevistas promocionais, das que são combinadas ao pormenor entre a editora e os meios de comunicação social, em Portugal e no Brasil. Há nisto um claro negócio multinacional que, por legítimo que seja, contraria o teor do documento fundador do ideário que o escritor perfilha.

É certo que, através da literatura e das intervenções públicas, Saramago tem dado apoio a um “movimento revolucionário contra a ordem social e política existente”, que é, no entender de Marx e Engels, uma das missões dos comunistas. Mas pela forma elaborada como escreve e disserta não se pode esperar que seja entendido pelo comum mortal, mas apenas por literatos. Serão os literatos os destinatários necessários de uma mensagem como a comunista?

Não mentimos, aliás, se dissermos que já ouvimos a muito boa gente, que sabe ler e escrever bem, que a linguagem literária de Saramago é complicada ao ponto de comprometer o entendimento da narrativa. E com isto está tudo dito.

Ora, se não somos dos que acham que Saramago é um escritor comunista (nem, se fosse, que isso é razão sumária para o desconsiderar), também não somos dos que acham “As Intermitências da Morte” um mau romance, como já por aí se escreveu. “As Intermitências da Morte” é um bom romance. E passamos a dizer porquê.

Não maça. Não entedia. Não é extenso. Não agonia. Não expele fel. Não é catastrófico. Nem podia, porque é uma comédia. Das valentes.

Uma comédia com situações risíveis: o diálogo entre um emissário da máphia (organização secreta que toma conta do negócio funerário) e um pobre dono de uma agência funerária (pp. 125 e 126); a descrição da caligrafia da personagem morte (p. 117), em óbvia paródia à forma adoptada pelo autor nos seus livros; ou esta passagem, que não resistimos a citar: “Os amantes da concisão, do modo lacónico, da economia de linguagem, decerto se estarão perguntando porquê, sendo a ideia assim tão simples, foi preciso todo este arrazoado para chegarmos enfim ao ponto crítico. A resposta também é simples, e vamos dá-la utilizando um termo actual, moderníssimo, com o qual gostaríamos de ver compensados os arcaísmos com que, na provável opinião de alguns, hemos salpicado de mofo este relato, Por mor do background.” (p. 71).

É uma comédia em sentido restrito, como a estabeleceu Charles Maurron: um jogo (a morte deixa de matar, depois volta a matar e, por fim, só não mata uma pessoa concreta), para o qual o leitor é convidado, com vista a que, pelo prazer (as situações risíveis), se liberte das angústias reais (a morte).

* Marx, Karl e Frederich Engels. Manifesto do Partido Comunista. Col. Textos Políticos. Ed. H. A. Carneiro, Porto, s/d.



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