“Melancholia”
Nunca o fim do mundo nos pareceu tão belo.
O novo filme de Lars Von Trier remete-nos para “The Tree of Life” de Terrence Malick, ambos com epicentro numa família particular que faz a ponte para toda a humanidade, alternando entre a Terra e o espaço celeste. Mas se em Malick a música pauta a vida, em Trier é uma marcha para a morte – ainda que o fim do mundo nos seja apresentado de forma harmoniosa.
Malick filma com maior liberdade, enquanto Trier recorre à estrutura clássica. Primeiro, e como vem sendo habitual, um prólogo com imagens em super slow-motion que transbordam de tristeza e frustração. Kirsten Dunst e Charlotte Gainsbourg lutam contra os elementos da natureza e consigo mesmas, enquanto a música de Wagner, «Tristão e Isolda», fala tanto ao coração como à inteligência. Cinco minutos esmagadoramente belos, onde desde logo nos é apresentada a narrativa. Von Trier joga, nessa sentido, com o conhecimento do espectador. O seu cinema não é feito de surpresas, mas de factos.
Em seguida, dois capítulos. O primeiro, dedicado a Justine, decorre na noite do seu casamento. A cerimónia protocolar serve para desmontar uma família disfuncional: duas irmãs com aparência e personalidade opostas – Justine sofre de uma profunda depressão e Claire carrega às costas o dever e a obrigação –, uma mãe amarga e descrente e um pai bêbado e mulherengo. Nada que já não tivéssemos visto. Noah Baumbach já o tinha feito em “Margot at the wedding” e Jonathan Demme seguiu-lhe os passos com “Rachel getting married”. Trier continua essa espécie de experimentação controlada da desobediência humana.
No segundo capítulo, focado em Claire, desenvolve-se a dinâmica familiar e evidencia-se o carácter antagónico das duas personagens principais, com reviravoltas no seu comportamento: a proximidade do planeta Melancholia faz Justine caminhar para a harmonia, enquanto Claire é consumida por um sofrimento paranóico e atroz. Justine está certa de que o planeta embaterá contra a Terra e a destruirá. Do mais alto do seu alheamento, proclama saber coisas – “A Terra é má. Ninguém sentirá falta dela.” -, recebendo a ideia da extinção da humanidade de braços abertos.
Essa ideia fá-la sentir-se melhor, física e psicologicamente, enquanto Claire perde o controlo da situação. O seu desespero é fortíssimo e altamente comovente. Ela esforça-se para que tudo volte à ordem natural, mas não vê qualquer resultado. Ao contrário de Justine, Claire tem uma família a perder e o carácter niilista egocêntrico da irmã perturba-a ainda mais. A sua ansiedade fá-la ficar doente, incapaz de enfrentar a realidade, e é Claire quem no fim trata dela, construindo uma cabana onde possam esperar juntas pela morte. É essa, aliás, a única vez em que estão realmente uma com a outra. Até aí estabeleciam uma relação de enfermeira e paciente, porque foi essa a maneira que Claire encontrou de ajudar a irmã, ou pelo menos de se convencer disso. Só que Justine não está minimamente interessada em ser salva e Claire não aceita essa decisão, nem que o controlo se lhe esvaia das mãos. O modo que cada uma encontra de lidar com o apocalipse é filmado com uma crueldade quase prazerosa. Claramente, Trier expressa todo o seu desprezo pela humanidade, onde só o fim trará paz. O apocalipse é tratado com beleza e recebido com graça.
“Melancholia”, além de dar nome ao planeta, nomeia uma disfunção emocional caracterizadora do estado mental de Justine, a sofrer a angústia e o vazio da depressão. Segundo Freud, a melancolia traduz-se num profundo desinteresse pela vida, incapacidade de amar, inactividade e baixa auto-estima. O potencial destrutivo do planeta é uma metáfora para a sua auto-destruição e, em última instância, o estado de Justine personifica o estado do próprio Universo.
Kirsten Dunst tem o melhor papel da sua carreira, que lhe valeu o prémio de melhor actriz em Cannes. É claramente a filha mimada e bonita que tem tudo, mas nada lhe interessa. Charlotte Gainsbourg volta a mostrar ser portadora de uma imensa densidade emocional e a sua voz é, literalmente, música para os nossos ouvidos. É a personagem com maior base dramática: irmã, mulher e mãe, o seu sofrimento reveste-se de uma força real e por isso toca-nos mais que a personagem de Dunst, pela qual podemos chegar a sentir um enorme desprezo. Justine é o objecto catalisador de toda a angústia, medo e sofrimento, e o seu egoísmo faz com que não se preocupe minimamente com nada, nem ninguém. Em última análise, nada do que se faça nestes “últimos dias” deve ter relevância. Afinal, é o fim do mundo e em breve tudo não passará de cinzas.
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Inês tenho a dizer que a tua review ao filme está muito bem escrita. Também sou colaboradora da Rua de Baixo e escrevo por vezes sobre filmes (ou tento :) e gostei muito do que li. Um texto muito bem construído e ao mesmo tempo com sincera opinião. Em relação ao filme, gosto bastante de Lars Von Trier, mas pensar que este filme pode ser comparado ao Tree of Life assusta-me um pouco, porque realmente não gostei do filme, mas veremos. Beijinhos
Obrigada pelo comentário, Vanessa.
O filme remete para o "The Tree of Life" apenas no sentido em que ambos contêm imagens 'fora' da Terra e se focam numa família específica que personifica todo o Universo. De resto, não têm nada que ver um com o outro. O modo de filmar é totalmente distinto e, como disse, Malick abraça a vida e Trier a morte, através da exploração do potencial negativo da existência humana.
Não é tão forte como o "Antichrist", mas dá mais que pensar. Depois diz-me se gostaste. Beijinhos