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MEO Kalorama 2024 | Dia 1 (29.08.2024)

Concertos intensos e inesquecíveis marcaram uma noite de emoções.

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Texto por Miguel Barba e fotografia por Graziela Costa.

O infeliz cancelamento de Fever Ray, permitiu resolver o imbróglio de ter Loyle Carner e Peggy Gou a actuar em simultâneo, com a antecipação do primeiro para o slot deixado vago por Fever Ray. O dia arrancou com Muleca XIII e o seu hip hop, ritmo e poesia. Os Monobloc surpreenderam e Ana Lua Caiano provou que não há palcos demasiado grandes para si. Os Gossip cumpriram com distinção, com Beth Ditto a provar como são importantes nos tempos que vivemos. Os Massive Attack foram avassaladores e incisivos na mensagem, recorrendo de forma exímia ao seu repertório. Loyle Carner extravasou a sua simpatia, aliada à competência da banda e de um público rendido, para voltar a entregar um concerto irrepreensível. Já Sam Smith trouxe um espectáculo que teve pop, dança e provocação em doses XXL, cabendo a Peggy Gou fechar a noite em festa, perante um mar de gente que não arredou pé.

Pouco passa das 17h15 e está uma frente de palco deserta, fruto da hora, mas a Muleca XIII entrega-se de corpo e alma. Não é prime time, mas é um prime place para o seu hip hop de cariz social e de intervenção, que cruza o Atlântico, e com o toque de Midas de Sam The Kid, a jogar por fora (mas muito) e em casa. “Máximo Respeito”.

Os Monobloc sobem ao palco à hora certa e com um agradecimento por virmos cedo. É impossível não pensar num período no início do século em que Nova Iorque efervescia. O contexto é diferente, é certo, mas a vontade de agitar as águas está toda lá. Há riffs certeiros, uma voz que chama a atenção, tudo muito bem alicerçado por um baixo e duas guitarras que nos embebem num post punk com uma elevada dose melódica. «Where Is My Garden» não engana. E o mesmo se pode dizer sobre «A Whole Lotta Madness». E não teriam envergonhado ninguém se tivessem tocado mais tarde. Não inventam a fórmula, mas sabem aplicá-la e isso não é algo ao alcance de todos e souberam fazê-lo no pouco tempo que tiveram à sua disposição.

É impossível ficar indiferente à evolução de Ana Lua Caiano em palco. O controlo absoluto do espaço em seu redor e a capacidade de chamar a si os outros, mesmo quando o público não é o seu e com um à-vontade desarmante. As canções de Ana Lua Caiano são um a olhar para a frente, de mão dada com a música tradicional portuguesa. O momento didáctico a explicar como cria as suas canções em palco, continua presente e a forma como é apresentado torna-se uma parte concerto, tal a naturalidade com que é feito. «Deixem o homem morrer» continua a despertar uma reacção surpreendente e «Vou Ficar Neste Quadrado» impressiona pela projecção que consegue mesmo neste palco, vasto; não há palco demasiado grande para Ana Lua Caiano.

Os Gossip parece que nunca pararam. Beth Ditto continua um portento e a sua presença faz mais sentido do que nunca no mundo de hoje. «Listen Up!» abriu o concerto para garantir que os neurónios certos eram activados. Há direito a mudança de indumentária, como um statement do quão segura de si Ditto se sente. A química surge naturalmente porque em cima do palco não se complica e entrega-se exactamente aquilo que é esperado, perante um final de tarde dourado. A persona de Ditto em palco vai mutando. Seja no que usa, seja na postura (e aí as canções que são interpretadas têm naturalmente a sua palavra a dizer) e isso opera como um elemento que nos vai “agarrando”. A única constante absoluta aqui é o  elemento dançável e isso por si mostra-se  como mais do que suficiente. «Standing In the Way Of Control» surgiu na recta final e foi exactamente aquilo que se esperava.

Desde há alguns anos para cá, de tempos discute-se se os Massive Attack continuam sendo uma banda pertinente. E concerto após concerto eles respondem inequivocamente; enquanto o mundo não for um lugar justo, os Massive Attack continuarão por cá para nós lembrarem disso.

Com os Massive Attack o contexto é tudo. Por isso é importante comunicar claramente e por isso os vídeos que vão aparecendo têm legendas em português. 3D tem uma braçadeira com Palestina escrito. Bristol aterrou na Bela Vista. O ecrã de leds no fundo do palco, é uma parte imprescindível da mensagem que se pretende passar do cimo daquele palco. Horace Andy continua aí para as curvas com «Girl I Love You». Elizabeth Fraser é outra cúmplice e apresenta-se com «Black Milk». Também aqui nos vemos bombardeados visualmente com aquilo que todos os dias somos vítimas, directa ou indirectamente.

Os Young Fathers também se juntam, num primeiro momento para «Gone», sempre com a capacidade de nos fazer oscilar entre o prazer e o desespero, com uma casualidade assustadora. Há uma vontade deliberada em nos fazer sentir desconfortáveis, onde as imagens que passam desempenham um papel fundamental. Segue-se «Song to Siren» de Tim Buckley pela voz de Elizabeth Fraser e Del Nadja à guitarra, enquanto passam imagens de guerra e destruição.

«Inertia Creeps» continua sendo um amasso tremendo e faz jus ao seu título, reforçada com as imagens que nos levam  questionar a nossa apatia perante o que vai acontecendo pelo mundo. «Rockwrock» dos Ultravox surge num registo post-punk completamente dissonante de tudo o que ouvimos até agora e funciona como um momento de libertação, mas apenas se fecharmos os olhos porque nem aí as imagens nos dão tréguas.

«Angel» ribomba de forma apocalíptica, como sempre, até ao momento em que a voz de Horace Andy vem ao nosso encontro, como a luz que fura as trevas ou que nos tira de águas turvas e profundas em direcção à superfície. Deborah Miller entra para cantar «Safe From Harm», dedicada ao povo da Palestina, e de seguida naturalmente que se adivinha «Unfinished Sympathy». Já «Karmacoma» destila ironia alavancada pelas imagens desconcertantes que passam do início da década de 90 e pós 11 de Setembro, dos caminhos estranhos por onde o mundo ocidental enveredou.

«Teardrop» continua a simbolizar esperança. O que aí vem. É assustadora a forma como este alinhamento está construído. Precisamos disto neste momento. Temos também direito a «Levels», um cover de Avicii, porque a vida vai sempre bem com um toque de ironia. «Group Four» surge na recta final, contando com a voz de Elizabeth Fraser, juntamente com Del Nadja. Concerto incrível.

De regresso após um muito bem-sucedido concerto em Coura em 2023, Loyle Carner continua a mostrar os seus argumentos. Um hip hop em que a soul é a outra parte indissociável das suas canções. Junte-se a isso um charme natural e o concerto tem tudo para correr bem, mesmo tendo havido problemas com a bagagem da banda. O espírito está em alta, tal como o amor inabalável pelos seus, com o filho à cabeça. «Still» surge dedicada a si próprio, porque é sobre as suas fragilidades. Pelo meio fala-se sobre a capacidade de falarmos abertamente sobre as nossas emoções, em especial homens e melhor ainda se de tenra idade. Seríamos todos melhores pessoas.

Indiscutivelmente o mais desejado da noite, Sam Smith já caminhava entre os lisboetas já há já alguns dias, o mais confortável possível na sua pele. Isso transparece em palco, enquanto canta e enquanto vai falando com o público. O seu pop brilha, coadjuvado por um coro, bailarinos e uma banda naturalmente competentíssima. Smith é elegante em todos os momentos, pontificando quando coloca o longo, magnífico e pomposo vestido  negro e interpreta «Good Things». De seguida o Parque da Bela Vista recebe LaDonna Harley-Peters, para interpretar «Lay Me Down», tal como vem acontecendo desde há dois anos para cá, como Sam Smith faz questão de contar; os bons hábitos podem e devem ser mantidos. «Gimme» introduz uma outra faceta de Sam Smith, mas na realidade a mensagem que daqui deve sair é um simples – mas não menos válido – “sejam quem quiserem”. Mesmo. À medida que o concerto evolui, e no último terço se pisca o olho de forma descarada à electrónica, começamos a perceber como tão bem isto encaixa com Peggy Gou, quer quando Smith está de colete preto e boné preto, quer quando está com um espampanante e volumoso vestido onde as cores do arco-íris prevalecem. Quase no final Sam Smith canta «I Feel Love» de Sonna Summer, elevado no final com um canto gregoriano de «Gloria» que dá o tempo necessário para Sam Smith mudar o traje para «Unholy», garantindo um final provocante, épico e inesquecível.

Quando começamos a dançar ao som de Peggy Gou a música de dança dos 90 e quiçá 80, vem facilmente à memória, mas aqui há um twist que faz com que resultem em pleno hoje e aqui, e o mar de gente que ficou para a ver, após o concerto de Sam Smith fala por si. Há uma declaração de amor explícita e sem pinga de vergonha a sons que se calhar muitos classificariam como guilty pleasure.

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Podem encontrar todas as reportagens completas do MEO Kalorama 2024 aqui.



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