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Morricone e Companhia

Entre os anos 60 e 80, o cinema comercial italiano foi responsável por uma quantidade absurda de filmes fascinantes nos mais diversos estilos. Essa era de ouro também se fez marcar nas bandas sonoras.

“It would be worth being a zombie, if this theme were played as my theme”, diz o utilizador do YouTube OdinsBelly acerca da faixa “City Of The Living Dead” de Fabio Frizzi, um stomper de guitarra e sintetizadores. De facto, é difícil passar algum tempo que seja a explorar o mundo do cinema de género italiano – seja o spaghetti western ou o giallo, o poliziotteschi ou os filmes de canibais – sem notar que grande parte do que torna essa fase da história do cinema tão aliciante é a roupagem musical presente nos filmes. Para lidar com a produtividade alucinante desses tempos, foram recrutados uma série de compositores, vindos da música clássica e do Jazz, das bandinhas de Rock & Roll e a partir de uma certa altura também dos conjuntos de Progressive Rock, que mudaram o conceito de banda sonora de forma tanto ou mais radical como os realizadores com que trabalhavam mudaram a identidade dos estilos em que trabalhavam. Com assobios e berimbaus, guitarradas e sintetizadores, estes artistas deixaram-nos um legado de música bizarra, ao mesmo tempo experimental e trauteável, e muitas vezes muito à frente do seu tempo. Neste artigo, focamos alguns dos maiores nomes do meio.

Ennio Morricone

O maestro é hoje, provavelmente, o criador de bandas sonoras mais conhecido do mundo. Mas nem por isso é de conhecimento geral exactamente porquê as suas obras emblemáticas no spaghetti western foram tão inovadoras; nem que, para além desses feitos, Morricone criou também música de valor considerável nas áreas do Disco, do Bossa Nova e da música experimental.

Quando um jovem Sergio Leone encomendou a Morricone a musicalização do seu primeiro western, o mundo das bandas sonoras – com raras e honrosas excepções – era dominado pelas orquestrações. O mesmo tipo de música pseudo-clássica era utilizada para servir como trilha dos mais variados estilos de filmes. A grande mais valia de Morricone ao criar o seu célebre som spaghetti western foi ir além disso, adequando a instrumentação ao sabor dos filmes que representava. Assim, nos westerns com música de Morricone, encontramos guitarras eléctricas com alto teor de fuzz (símbolos da morte e do calor do Oeste), berimbaus (abutres a circular o protagonista), trompetes (a contestar a fronteira para o velho México) e também instrumentos vocais: o assobio solitário de Alessandro Alessandroni, o soprano melancólico de Edda Dell’Orso, os grunhidos de “we can fight!” em “A Fistful Of Dollars”. Estes ingredientes – bem como o uso de elementos de composições conhecidas da história da música erudita, realçando que, afinal de contas, este Oeste é na Europa – aparecem vez após vez nas obras de Morricone para o género, e acabam por criar uma espécie de história comum: aquela guitarra solitária é sempre o man with no name, chame-se Blondie, Django ou Ringo.

Mas tudo isto representa apenas uma fracção da obra de Morricone. Nos anos 60 e 70, este demonstrou uma produtividade quase absurda, compondo centenas de obras para todo o tipo de filmes. Há Easy Listening do mais exótico e excêntrico que os anos sessenta nos podem fornecer; Bossa Nova tão bonita como a de Jobim; as composições para filmes de gangsters, quase sempre com a mesma estrutura de pausas abruptas; e há – e isso será provavelmente o elemento mais importante para o próprio – amplas evidências da influencia da música experimental, especialmente nas bandas sonoras para filmes de terror. Ah sim, porque Morricone lá pelo meio também era membro do Gruppo di Improvvisazione Nuova Consonanza, o grupo mais vanguardista de música improvisada da Itália.

Muitas vezes, a música de Morricone transcende os seus contextos. Não tenho grande interesse em ver “Il Ladrone”, filme de 1980 em que o cómico Enrico Montesanto faz de contemporâneo de Jesus numa espécie de “Life Of Brian” à italiana; o tema natalício de Morricone conta-me toda a história que quero conhecer. E poucos devem ser os que tiveram a oportunidade de ver “Maddalena”, uma co-produção italo-jugoslava de 1971 sobre a crise de fé de um padre; mas relançados em 1978, “Come Maddalena” (Disco quente e profundo) e o momento New Age proto-Balearic “Chi Mai” tornaram-se clássicos.

Goblin

Santos padroeiros da banda sonora de terror, capazes de alinhar nas progalhadas mais pomposas e no Disco mais viscoso, os Goblin são o espírito decadente dos anos 70, um mastodonte com estatuto de estrela na sua terra natal e culto pelo mundo afora.

A história dos Goblin começa quando, em 1975, o realizador Dario Argento encomenda a banda sonora do seu mais recente filme, “Profondo Rosso”, a uma jovem banda de Progressive Rock. Argento, responsável pela vaga do giallo (basicamente os predecessores italianos dos tão conhecidos stalker movies – muita luva negra, muita melhor bonita a morrer de forma macabra) que tinha suplantado a febre italiana pelo western, iria iniciar assim uma relação frutífera com o colectivo, que se iria estender pela maior parte dos filmes mais aclamados do realizador.

As bandas sonoras dos Goblin para Argento distinguem-se por um uso alargado de teclas e sintetizadores – primeiro os mellotrons da moda e, mais tarde com o nascer dos anos 80, as texturas mais minimais que conhecemos das bandas sonoras de John Carpenter. Ao mesmo tempo, apostam também em todo o peso e circunstância do Progressive Rock. Talvez um dos toques mais geniais, no entanto, será o recorrer frequente a instrumentos de música étnica, como por exemplo a sitarra. Tudo isto em função de uma atmosfera opressiva e fantasmagórica.

Estrelas maiores durante os anos 70 na Itália, responsáveis por uma data de bandas sonoras clássicas fora da obra de Argento (“La Via Della Droga” de Enzo G. Castellari e “Dawn Of The Dead” de George Romero são apenas dois exemplos), mesmo assim, por volta de 1978, o seu teclista Claudio Simonetti procurava algo de novo. Em parceria com o empresário Giancarlo Meo, Simonetti virava-se agora para as luzes do Disco-Sound, lançando uma série de discos sob vários nomes (Easy Going, Kasso) e com vários colaboradores (dos quais se destaca a vocalista Vivian Vee) que iriam lançar a fundação para o Italo Disco. Tal como tinha acontecido uma década antes com os spaghetti westerns, assumiam-se nomes falsos para passarem por americanos; e tal como nesse género, o resultado final era algo impossível de se confundir com o original.

Hoje, a influencia dos Goblin pode ser identificada em muitos lados: desde as inúmeras bandas de Progressive Rock e Metal que vêm beber a fontes como “Profondo Rosso” e “Suspiria”, até à influência de Simonetti na música de dança (os Justice samplaram “Tenebre”; a editora Italians Do It Better, de Mike – aha! – Simonetti presta tributo regular à estética do giallo.)

Luis Bacalov

Se, durante os anos 60, querias fazer um spaghetti western, ligavas ao Ennio Morricone para fazer a banda sonora. Se esse estivesse ocupado, ligavas a Luis Bacalov.

É uma forma meio ingrata de ficar para a história, mas o compositor argentino naturalizado na Itália tem muito para o compensar: ganhou um Oscar (por “Il Postino”, 1994), trabalhou com Fellini (“La Cittá Delle Donne”, 1980) e, com “Django”, produziu uma banda sonora tão icónica como qualquer uma de Morricone, com a diferença de que esta tem um tema para cantar (com letra existente em italiano, inglês e japonês.) Verdade seja dita, as bandas sonoras de filmes como “Quien Sabe?” e o já mencionado “Django” não estão de forma alguma abaixo do nível de qualidade de Morricone; mas o período mais fértil do compositor para este escriba localiza-se no início dos anos 70, quando começa a experimentar com bandas de Progressive Rock como New Trolls, Il Rovescio della Medaglia e Osanna. Com estes últimos, colaborou na banda sonora de “Milano Calibro 9”, um dos melhores poliziotteschis de sempre. No início do filme, vemos uma longa sequência de encontros inseridos num esquema ilegal. Sem qualquer diálogo, o filme avança, acompanhado pelos sons de Bacalov e Osanna: um piano melancólico, secção de cordas ameaçadora, flauta, guitarras e bateria em modo de freak out completo. Essa alternância entre uma banda sonora “convencional” e experimentação Prog Rock dá muito a uma cena magistral num dos mais subestimados filmes do cinema italiano.

They Also Served

Para além desses nomes maiores, há ainda toda uma panóplia de bons compositores que trabalharam no cinema italiano durante essa altura.

Fabio Frizzi é conhecido principalmente como colaborador de Lucio Fulci, um dos nomes maiores do gore italiano. Passando primeiro pelo Jazz e depois pela produção de bandas sonoras para spaghetti westerns, Frizzi atingiu o seu primeiro momento icónico quando compôs, juntamente com os seus colaboradores frequentes Franco Bixio e Vince Tempera, o jocoso tema principal da comédia “Febbre Da Cavallo”. Mas foi o Mellotron pesado de “Zombi 2” que iria marcar o percurso futuro da carreira de Frizzi, cujas bandas sonoras – normalmente na área do cinema de terror – se iriam virar mais e mais para os sintetizadores.

Riz Ortolani começou a construir a sua reputação com a banda sonora do marcante shockumentary “Mondo Cane” – uma obra, infelizmente, de pouco interesse, com Jazz frouxo a partilhar espaço com Easy Listening de pouco valor. Palavras de maior agrado poderão ser proferidas sobre o seu tema para outro filme infame, o violentíssimo “Cannibal Holocaust”; uma balada lírica composta principalmente pelas cordas distorcidas de um sintetizador – antes dos tempos da Internet, houve quem se sujeitasse a ver várias vezes o filme, mesmo sem gostar desse, só para ouvir o tema. Destaque ainda para o momento de Disco com toques de Jazz que é o tema para “House On The Edge Of The Park” (“La Casa Sperduta Nel Parco” no original), que espelha a decadência – se bem que não a violência – do filme.

Os irmãos Guido e Maurizio De Angelis (também conhecidos pelo pseudónimo de Oliver Onions) são um caso de amor/ódio para muitos cinéfilos. Activos desde o início dos anos sessenta, começaram a alcançar sucesso maior na área das bandas sonoras compondo para os filmes da dupla Terence Hill e Bud Spencer. A sua insistência em fazer uso extensivo de vocalistas nem sempre é do agrado dos espectadores: o exemplo mais notório será “Keoma”, de Enzo G. Castellari, considerado por muitos o último grande spaghetti western, mas manchado – segundo dizem alguns – pelas intervenções vocais de uma sósia de Joan Baez, que insiste em cantar detalhes do enredo enquanto este se desenrola. Nos anos 70, a dupla foi ainda responsável por obras como “Il Cittadino Si Ribella” (melhor fuzz de sempre?) e “Zorro” (com Alain Delon; reutilizado por Wes Anderson em “Bottle Rocket”.) Para além das suas obras para o cinema, os irmãos são também conhecidos na Itália por terem composto as versões italianas dos temas de animes famosos como “Doraemon” e “Galaxy Express 999”, bem como – sim, pessoal que passou a sua carreira académica a sofrer com esta música, encontramos os culpados! – o tema original do notório “Dartacão”.



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