Queres fiado?
Revistas do burlesco e do satírico em Portugal. Parte II: O humor na Primeira República e no Estado Novo.
Se quereis boa saúde de espírito, lede
de preferência literatura alegre.
-introdução a “A Bomba Atómica do Riso”
No início do século XX, especialmente após o início da Primeira República, a imprensa de humor começa a perder a força que teve no século anterior. Continuam a haver periódicos satíricos, com caricaturas dos políticos da época, mas cresce essencialmente a banda desenhada infanto-juvenil, e as caricaturas já não têm o mesmo poder corrosivo que tiveram nos tempos da Monarquia.
A situação piora, obviamente, nos tempos do Estado Novo, com a instituição da censura. Efeito da repressão, a crítica torna-se cada vez menos assumidamente política e mais social. Mais uma crítica de gostos e comportamentos do que propriamente de ideias. Popularizam-se também as anedotas e os cartoons internacionais, que frequentemente envolviam figuras femininas voluptuosas. Aqui ficam alguns periódicos e artistas cómicos que se destacaram na época:
“Os Ridículos”
Um dos jornais humorísticos portugueses mais duradouros, “Os Ridículos” foi publicado durante quase um século. Surgiu em 1895, sob a alçada de José Maria da Cruz Moreira, o “Caracoles”, e, apesar de suspenso, entre 1897 e 1905 só terminou de vez a sua circulação em 1984.
Aqui predominava a crítica política e social, tanto às figuras da monarquia como às da Primeira República. Como é natural, a sua veia satírica foi bastante cerceada durante o Estado Novo.
Stuart de Carvalhais, Natalino Malquiades e Nelson de Barros foram alguns dos colaboradores que por lá passaram.
“Sempre fixe!”
O semanário humorístico fundado em 1926 por Pedro Bordallo Pinheiro, descendente de Raphael Bordalo Pinheiro. Apesar de tentar seguir uma linha bordalesca, o jornal foi muito condicionado pela censura salazarista, apostando mais numa crítica de costumes do que propriamente na sátira política.
A rubrica mais conhecida do semanário era a “Ecos da Semana”, desenhada por Carlos Botelho. Tratava-se de uma página de banda-desenhada onde o quotidiano lisboeta era satirizado.
Mesmo não atacando directamente as figuras do regime, as ilustrações eram, por várias vezes, cortadas pelos censores (ou pelos Pius, como Botelho gostava de chamar). Quando isso acontecia, Botelho assinalava os desenhos com um pequeno mocho, para informar o leitor de que tinha havido censura. A página acaba por ser descontinuada em 1950, por causa destas pressões. O jornal terminou a sua publicação em 1961.
O jornal é também conhecido pelo seu contributo para o desenvolvimento da banda-desenhada em Portugal, tendo incluído tiras de Stuart de Carvalhais e de Almada Negreiros, entre outros.
“Cara Alegre”, “O Mundo Ri” e “Riso Mundial”
Lá mais para os finais dos anos 40, e durante os anos 50, começam a popularizar-se revistas que incluíam essencialmente cartoons e anedotas retiradas de publicações estrangeiras e, em menor quantidade, algum material nacional. Isto devia-se ao facto de ficar mais barato aos editores comprar anedotas e cartoons estrangeiros do que encomendar obras portuguesas. Algo quase invariável nestas publicações eram as cenas de capa, em que um homem ou um grupo de camaradas olhava com ar libidinoso para uma mulher exageradamente formosa.
O “Cara Alegre” era editado por Nelson de Barros, humorista e dramaturgo. A revista chegou a contar com contribuições de Stuart de Carvalhais e José Vilhena, mas quase página sim, página não, incluía “Humorismos” de outros países. Para além das revistas, as edições “Cara Alegre” publicavam também livros, como as antologias “Vinte Contos de Graça Portuguesa” e “Bomba Atómica do Riso” (com textos de humoristas internacionais como Pitigrilli e P.G. Wodehouse).
O “Mundo Ri” era uma publicação mensal, num formato muito reduzido, onde eram publicadas anedotas e cartoons internacionais traduzidos ou com legendas acrescentadas em português. José Vilhena foi editor da revista em 1955 e o mesmo desenhou muitas das piadas de capa.
O “Riso Mundial” seguia um modelo semelhante, e alguns números podem ser encontrados online, no site da Hemeroteca Digital.
Tal como Bordallo Pinheiro, Stuart foi mestre em vários ofícios: precursor da banda-desenhada em Portugal, fotógrafo, realizador, actor, decorador, cenógrafo e designer gráfico.
Em 1915, Stuart cria as “Aventuras do Quim e do Manecas”, histórias cómicas em banda desenhada sobre dois miúdos reguilas, que tentava retratar de forma crítica as posses da burguesia em contraposição com a pobreza da grande maioria da população. Stuart chega a trabalhar numa adaptação, infelizmente perdida, destas personagens ao cinema.
Apesar de republicano, Stuart colaborou, durante a Primeira República, em o “Papagaio Real”, uma revista satírica de cariz monárquico.
Apesar da chuva de propostas de trabalhos, desde desenhos para capas de livros até ementas de restaurante, Stuart era conhecido por esbanjar o dinheiro em bebida e farra, como qualquer artista que se preze. Esta instabilidade financeira leva-o a experimentar materiais suis generis, como papel de embrulho ou tampas de caixotes encontrados no chão ou, mais frequentemente, fósforos queimados que usava como lápis.
Para além das contribuições para quase tudo o que era publicação de humor na altura, Stuart foi também fundador e director artístico da revista “Picapau”, lançada com o apoio do Diário de Notícias, da qual só foram lançados 7 números.
Para quem quiser saber mais sobre algumas destas revistas, aconselho a leitura das memórias de António Gomes de Almeida, disponíveis em truca.pt.
No próximo capitulo: Dos Parodiantes de Lisboa até ao Moralista.
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